Passam, agora, 50 anos sobre a revolta da UPA no norte de Angola. Centenas de portugueses e milhares de angolanos mortos. Uma guerra que se prolongaria 13 anos e continuaria, de outra forma, até ao novo milénio. A zona do Quitexe foi das primeiras a ser confrontada com este cortejo de desgraças. No texto anexo os autores descrevem as situações dramáticas que viveram e episódios que ajudam a compreender os caminhos que levaram àquela tragédia imensa. Textos fundamentais para a compreensão do conflito, escritos de forma tão impressiva a que não ficamos indiferentes devido à magnitude do drama humano e social então vivido, à sinceridade que se pressente no que os autores nos dizem e à forma simples, viva e directa como estão escritos.
João Nogueira Garcia
António Manuel Pereira Guerra
O dia-a-dia numa fazenda do Quitexe
Estamos ainda na época das chuvas que, quanto mais intensas, mais beneficiam uma boa floração do café. Os dias são todos iguais nesta época: é preciso capinar todo o cafezal dado que as ervas crescem rapidamente pois o calor intenso e a farta humidade no solo não dão tréguas ao pessoal. Cada contratado capina diariamente120 pésde café.
Junto às casas, os armazéns do café e a casa das máquinas de descasque constituem o sector laboral. No acampamento, situado no morro em frente, à beira da mata, vivem os contratados do Sul, em número variado conforme a época do ano: entre 60, no tempo das chuvas e 100, na época do cacimbo, altura da colheita do café. Entretanto tinha sido inaugurada no Quitexe uma escola primária tornando possível, aos colonos, terem junto de si os filhos em idade escolar.
Este é o cenário que dia a dia se vive na Roça Quimbanze de João Nogueira Garcia, a 3 Km da povoação do Quitexe, semelhante a todas as fazendas de café da região.
Relata-nos João Garcia:
É neste correr do dia-a-dia que numa das minhas idas ao Quitexe encontro o Chefe do Posto Nascimento Rodrigues que diz precisar de falar comigo, confidencialmente:
Ele, Chefe do Posto, tinha sido alertado pela PIDE que estavam a ser distribuídos panfletos subversivos nas sanzalas para os lados do Zalala e que esses panfletos eram de uma organização política designada por U.P.A. que significava União dos Povos de Angola. O Chefe esclareceu que estava a contactar todos os fazendeiros para colaborarem com a PIDE dando-lhe todas as informações que fossem colhendo. Respondi-lhe que de tudo que eu viesse a saber lhe daria conhecimento a ele e não à PIDE, visto ser organização que sempre repudiei. Esta conversa teve lugar no dia 5 de Março de 61.
Entretanto as férias escolares haviam começado e, por isso, não era necessário levar os miúdos ao Quitexe.
No dia 10, escrevo uma carta à minha Tia Marquinhas, carta essa que mais tarde recuperei e que agora transcrevo:
Dia de Comunhão no Quitexe. À esquerda o Tó Guerra entre os irmãos Baptista (Manuela e João) e à direita os irmãos Barreiros (Graça e Acácio, futuro deputado da UDP e PS)
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(...) Desculpe a Tia o só hoje dar notícias mas como deve calcular estas vidas, primeiro a baixa do café que atingiu um preço que pôs toda esta região à falência e agora surge o inevitável problema político, para o qual os governantes resolveram solucioná-lo pela força. Seremos nós, os do interior, homens, mulheres e crianças as principais vítimas, pois além de nos encontrarmos indefesos, por mil e uma razões não podemos abandonar esta boa mas também maldita terra. Em Luanda parece que os encontros têm sido renhidos e que já houve centenas de mortes, mas mesmo lá, por enquanto, parece que os ataques são só dirigidos contra a polícia e o exército e que das forças revoltadas fazem parte brancos. Seria uma sorte pois, se vamos para a questão racial será uma desgraça, pois será o caso de mata que é branco e mata que é preto. Mas parece-me que não teremos sorte pois esses cavalheiros daí para salvarem a pele não hesitarão em nos sacrificarem. (...)
Relendo agora a carta, quase me surpreendo com a clarividência com que expus a situação política vivida em Angola, bem como o alerta premonitório para o que se passaria cinco dias depois.
Ao fim de semana as famílias iam passear à Lagoa do Feitiço, a escassos 5 Km do Quitexe. Na foto da direita, ao centro, com a armadilha de peixes na mão, está o Zézito Guerreiro que viria a ser morto no 15 de Março.
Dia 15
À semelhança de todos os dias, mal despontam os primeiros alvores da madrugada, o capataz acorda o pessoal, batendo com o bocado de mola da carrinha num semi-eixo partido pendurado num galho duma messumba. Ao som das pancadas o pessoal do acampamento começa a formar a fim de serem distribuídas as tarefas para o dia de trabalho.
Quando saio de casa já só o vejo ir com o pessoal a caminho da plantação.
Da casa avistamos a estrada que, vinda do Uíge ou do Quitexe, dá acesso à fazenda continuando depois para S. José do Encoje e Ambuíla. Vimos, então, um jipe com o Chefe do Posto Nascimento Rodrigues ao volante. No banco traseiro o Abílio Guerra e o Jaime Rei. Eram afinal os três membros da Junta Local. Muito preocupados, o Chefe do Posto chamou-me de lado e disse-me que de noite tinha havido sarilho na fazenda do Zalala e que o gerente tinha conseguido fugir e ir para o Uíge chamar a tropa e que constava que muitos pretos haviam fugido da fazenda. Iam ver o que se estava a passar nas fazendas e que depois voltavam a passar por cá.
Não vá para o Quitexe. Há lá muitos mortos!
Lá partiram e eu desloquei-me para o Quitexe passando pela sanzala Talambanza onde iria buscar o carpinteiro Jorge Panzo. A sanzala, que ficava no cruzamento da estrada para o Uíge com a da fazenda, estava deserta. Nem Jorge, nem meio Jorge! Mas um capita vem apressado dizer-me:
Não vá para o Quitexe pois há por lá muitos mortos! O Dr. “Talambaza” (Almeida Santos) acaba de passar para tentar chegar ao Uíge e trazer a polícia!
De imediato dou meia volta ao jipe e corro a grande velocidade para casa passando pela fazenda do Armindo Lenita onde ele, a mulher e os dois filhos podem correr perigo. Chegado à fazenda chamo a Aline e digo-lhe para preparar cobertores pois podemos ter necessidade de fugir para a mata.
Mando, também, chamar o Alcindo e o Tavares, os empregados brancos da fazenda.
De volta o Chefe do Posto, o Abílio Guerra e o Jaime Rei vêm horrorizados dizendo que há mortos nas fazendas. Eu tenho que lhes dizer que no Quitexe também há mortos; os três tinham lá deixado as mulheres e os filhos e lá partiram, como loucos, sem saberem o que iriam encontrar.
Entretanto, no Quitexe
O António Manuel Guerra, então com dez anos, quando se levantou já não viu o pai Abílio Guerra. Tinha saído cedo com o chefe de posto, o Sr. Jaime Rei e dois cipaios do posto. Na véspera o chefe tinha-lhes pedido que os acompanhassem para os lados do Zalala, pois tinham fazenda para aqueles lados e iriam efectuar contactos com os trabalhadores das diversas roças dessa região pedindo-lhes que, caso aparecessem elementos estranhos ou suspeitos, os prendessem e mandassem recado ao posto do Quitexe.
- A minha mãe bem pediu ao meu pai que não fosse, mas de nada lhe valeu (pressentimentos de mulheres).
Recorda agora:
No final de 1960, tinha eu 10 anos, já qualquer coisa de anormal se fazia sentir, pois as festas familiares (Natal e passagem de ano) não foram como nos anos anteriores. As reuniões de família decorriam sempre com as armas em presença.
No Quitexe estavam a passar férias a minha irmã (que estudava em Luanda no Colégio das Freiras), e em casa do meu tio Augusto, onde também viviam os meus avós (António Inocêncio Pereira e Joaquina Pereira), estavam as minhas primas Milu e Juju, filhas do meu tio Celestino e tia Maria (que na altura estavam em Luanda).
Eu levantei-me cedo, como era hábito, e fui a casa do tio Augusto encontrar-me com a Milu e Juju, para as desafiar para irmos brincar. Como elas ainda estavam a matabichar, esperei por lá um pouco.
A minha mãe encontrava-se em frente da nossa casa, a curta distância da casa do tio Augusto, a podar umas roseiras de um canteiro de flores. A minha irmã ainda dormia.
Contou depois a minha mãe, que quando soaram as badaladas das oito horas, no sino da administração, que era o sinal para os comerciantes abrirem as portas das lojas, se gerou um certo burburinho na rua de cima. Era, afinal, também o sinal para começar o ataque ao Quitexe. Uns dias antes tinham fugido uns presos da prisão do posto e na perseguição que se seguiu, houve bastante algazarra, pelo que a minha mãe não deu importância ao barulho que ouviu, pensando tratar-se outra vez de uma fuga da prisão. Foi nesse instante que um elemento que estava na esquina da nossa casa, empunhou uma catana dirigindo-se a ela de arma no ar com a intenção de a matar. Ela começou a fugir em direcção a casa do seu irmão Augusto, aos gritos de socorro.
A minha mãe levou 11 catanadas e o Zézito Guerreiro ficou degolado à entrada da loja
Foi nesse instante que nós ouvimos os gritos da minha mãe e nos apercebemos da gravidade da situação. De imediato o tio Augusto agarrou a espingarda 22 long, ordenou-nos que nos escondêssemos e que só poderíamos sair quando ele nos fosse buscar. Desatou a correr em direcção à irmã que, entretanto, já tinha tombado junto ao cruzamento para a rua da Igreja (esta cena marcante, foi vista por nós, da porta de casa do tio Augusto). Os meus avós que também tinham saído em socorro da minha mãe, tombaram também. A minha avó sucumbiu na varanda da casa dos meus pais e já a vi morta quando acabou o ataque. O meu avô foi ferido com uma catanada na nuca, foi connosco para o Uíge, e veio a falecer 5 dias depois no hospital de Luanda.
Fotografia de Maria Helena Guerra, sendo visível a cicatriz que lhe atravessava o rosto, fruto da catanada que lhe fragilizou o osso do maxilar.
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Algum tempo depois chegou o tio Augusto que nos veio buscar, já com outra arma, uma caçadeira, que ele tinha ido buscar à arrecadação do posto, onde estavam algumas armas apreendidas, pois a 22 long tinha encravado ao primeiro disparo (salvou-se graças a uma pequena pistola 6,35 que andava sempre com ele no bolso das calças).
Em frente da minha casa, estavam o Sr. José Coelho Guerreiro e a esposa (D. Felismina), com a filha bebé a Maria Helena, a minha mãe com 11 catanadas (8 nas costas, 2 nos braços e uma no rosto, tendo o nariz ficado preso pelo lábio superior), a minha irmã e o meu avô que foi colocado num colchão na carroçaria da carrinha do Sr. José Guerreiro. Com o tio Augusto de pé na carroçaria a fazer protecção, seguimos para o Uíge. O filho mais velho do sr. José Guerreiro (José Cebola Guerreiro de sete anos), tinha ficado degolado à entrada da loja dos pais na rua de cima. Na cabine da carrinha de apenas 3 lugares, seguia o Sr. José a conduzir (ferido), a esposa (ferida) e filha, a minha mãe, a minha irmã, as minhas duas primas e eu. A minha mãe segurava o nariz com um roupão turco que ficou ensopado em sangue, bem assim como todos nós, pois das oito pessoas que iam na cabine três estavam feridas.
A viagem até ao Uíge decorreu sem incidentes e ao chegarmos ao Hospital, já lá estava o Dr. Almeida Santos (Dr. Talambanza como era conhecido) à espera, tendo sido a primeira pessoa a socorrer a minha mãe, aplicando-lhe logo uma injecção à entrada do Hospital.
Quando o meu pai chegou ao Quitexe, já se tinha dado o ataque e já nós tínhamos seguido para o Uíge. Como houve mobilização geral, nenhum homem mais foi autorizado a abandonar o Quitexe. Ficou 15 dias sem saber de nós, e nós sem sabermos dele.
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