Do social…
Para os que lêem sem terem vivido os anos 50 ou 60 em África, vou tentar compilar o modo como vivíamos os tempos livres (hoje impensáveis sem televisão, Net ou telemóvel).
Depois de um árduo e transpirado dia de trabalho, o repouso dos guerreiros fazia-se em casa com a família. Depois de jantar, geralmente à varanda ou nas salas, ouvia-se a rádio, ligado a pilhas ou baterias de automóvel, pois electricidade era coisa que ainda não havia (até 1959 ou 1960). Aguardavam-se as notícias, quase secretamente, da rádio Brazaville, por não estarem conotadas com a ideologia política reinante em Portugal, logo mais próximas da realidade e de âmbito mais alargado.
O cinema era aguardado com expectativa, como forma privilegiada de lazer. Até o Quitexe dispor de um gerador a diesel, o senhor que vinha do Uige para projectar o filme, trazia um pequeno gerador. O interessante é que a energia eléctrica só funcionava até às 11h da noite. No dia de cinema, não havia tempo para comentários sobre o filme. As pessoas saíam do armazém da administração praticamente a correr, para chegar a casa e rapidamente se aprontarem para se deitarem. Ao fim do 3º sinal de intermitência da luz, esta apagava-se até à tardinha do dia seguinte.
Os fins-de-semana eram os momentos sociais por excelência. Ou se ia para a fazenda, mas raramente uma família sozinha. Os grupos faziam-se por afinidade e os piqueniques eram formas de convívio muito habituais. A ideia de piquenique envolvia um almoço que na minha família era geralmente de bacalhau e batatas, acompanhados com as couves tronchudas que se cultivavam nas margens do ribeiro da fazenda do meu pai. Eram as raízes a falar mais alto! Também era frequente visitarmos outros fazendeiros. Recordo de um desses dias na fazenda da Minervina. O lanche era borrachinhos fritos com gindungo,q.b., de tal modo q.b. que os meus lábios ficaram inchados com tanto gindungo. O tratamento foi besuntarem-me a boca de manteiga. Era a integração a falar alto também.
Quando não se saía da vila ao fim-de-semana, o entretimento era, por vezes o Sansão – um bode pestilento e enorme do rebanho dos meus pais. Os homens serraram-lhe as pontas dos cornos e passaram a toureá-lo na rua de baixo. Diz-se que os primeiros militares que foram para o Quitexe comeram o Sansão. Era preciso estar com muita fome, penso eu.
O futebol (não fôssemos nós latinos) era outra forma de passar o tempo. Não me recordo muito bem do modo como decorriam os jogos, de quem jogava, mas recordo-me de um jogo de solteiros contra casados que teve um final agitado.
A vida era simples, mas nada monótona. Havia um sentido de comunidade em que se confiava e esta paz na maneira de viver fez de nós pessoas generosas e tolerantes, sem sermos “santos”. O Sol e o calor ajudavam a ter a porta sempre aberta e por ela entravam todos os que desejassem, mesmo sem as formalidades dos convites a que hoje estamos habituados.
Era normal qualquer casa dispor de um quarto, designado de “quarto de hóspedes”, sempre pronto para receber o amigo, o conhecido ou mesmo o viajante que por lá parasse.
Éramos realmente uma família alargada que conseguiu transmitir aos mais novos esse sentimento, ainda hoje vivo nos reencontros de angolanos, até daqueles que nunca conhecemos.
António Guerra
Esta é uma cópia do Boletim Oficial de Angola, publicado em 26 de Julho, recolhida pelo João Cabral e que terá sido o início da iluminação pública no Quitexe.
Diz-nos João Cabral:
"O que aconteceu no Quitexe, como refere o António Guerra, não foi muito diferente do que aconteceu, pela mesma época, no Bolongongo.
Até à chegada dos geradores públicos, as trevas só eram quebradas por velas, candeeiros a petróleo ou então pelos muito sofisticados Petromax. A partir de então, o gerador ligava-se à hora do crepúsculo e permanecia assim até às onze horas, iluminando as duas ou três ruas da localidade e fornecendo também iluminação às casas particulares. Então, piscava uma vez, piscava segunda vez... e à terceira era de vez, até ao anoitecer do dia seguinte em que tudo recomeçava.
Poucos anos mais tarde, o gerador passou a funcionar também duas ou três horas logo pela manhã, para que as senhoras - ou os seus criados - pudessem utilizar os novíssimos ferros eléctricos, substitutos dos de brasas, para passar a roupa.
Quanto aos restantes electrodomésticos... manteve-se o antigamente: fogão a lenha, frigorífico a petróleo e rádios a pilhas ou baterias".