O velho Correia que perdeu a mulher no Cólua
O Correia terá abandonado Luanda seduzido pela febre do café; ele e a sua esposa, uma senhora francesa, fixaram-se numa localidade chamada Cólua onde, outro luandense, locutor da Rádio de Angola e movido pelo mesmo sonho se lhe viera juntar. Suponho que, para além de pequenas casas comerciais, também tenham demarcado algum terreno de matas para plantar café. O Cólua pertencia à área do Posto Administrativo de Cambambe e estava localizada nas margens do rio Vamba, que faz limite com a área do Posto do Quitexe. Conhecia o Sr. Correia e a sua esposa por virem, de vez em quando ao Quitexe fazerem compras.
No dia 15 de Março, de manhãzinha, o Sr. Correia abandona o Cólua deixando lá a esposa na companhia dos criados. O seu destino é o Quitexe, onde é surpreendido pelo ataque da UPA. Consegue escapar mas não pode voltar e por ali fica, esperando que alguma força militar vá com ele ao Cólua ver da sua mulher, da qual não há notícias. Os dias vão passando e o velho Correia, homem de 60 anos e já de cabelos brancos, desespera perante a impotência de não poder ir à procura da esposa. Ninguém arrisca sair para aqueles lados. E, assim, dia após dia, de espingarda ao ombro e fazendo guardas à noite, espera, espera, espera...
Da desquerda para a direita: João Garcia, Martins Gonçalves, ?, Velho Correia
Um dia, alguém que viajou de avião para o Uíge, vem dizer-nos que o avião sobrevoou uma coluna militar entre a Bela Vista e Aldeia Viçosa, a caminho do Quitexe. Dois dias depois ainda nada se sabia dos militares; seria mais um boato lançado para alimentar um desejo tanta vez anunciado.
Afinal a coluna existia, mas vinha para ocupar a povoação abandonada de Aldeia Viçosa que ficava a 50 km do Quitexe. Tratava-se de uma companhia vinda de Luanda que lá acampou, com 50 trabalhadores Bailundos da fazenda Madeira & Marques que ficava perto da povoação. O Comandante da Companhia resolve mandar um pelotão ao Cólua, à procura da senhora francesa. O trajecto é muito mau, uma picada lamacenta. Os três jipões chegam à povoação, mas não encontram ninguém e resolvem regressar. Os Upas preparam uma emboscada e, quando os dois primeiros jipões saem duma curva, atacam a terceira viatura matando os nove soldados e apoderando-se de uma metralhadora, das espingardas e respectivas munições. A companhia alertada via rádio sai em socorro do pelotão, limitando-se a trazer os corpos dos nossos martirizados soldados. A companhia, meio destroçada, regressa a Luanda com os corpos, deixando outro pelotão de guarda à povoação, acompanhados dos 50 Bailundos.
Do pelotão e dos Bailundos nada se sabe. Não respondem às chamadas via rádio; um avião da Força Aérea da base do Negage tenta localizá-los durante três dias. É quando o Chefe do Posto e o Tenente, que comanda a pequena força militar, vêm ao meu encontro e me dão conhecimento dos factos que acabo de relatar.
- Agora, temos necessidade de alguém que vá a Aldeia Viçosa tentar encontrar os soldados desaparecidos. Vimos pedir-lhe o jipe...
- Sim senhor, acabo de encher o depósito e está ao vosso dispor.
- Mas Garcia, nós precisamos que além do jipe, você também vá....
- Mas como, eu? Para além do Dambi-Angola, que é a última sanzala do Quitexe, não conheço nada, nem ninguém. Como as coisas estão para aqueles lados é uma missão muito arriscada e riscos já nós corremos aqui todos os dias. Mas, afinal quem é que vai?
- O Dr. Assoreira, se você for, também vai.
- E quem mais?
- Mais ninguém.
O Dr. Assoreira seria a última pessoa que eu abandonaria pois além de muito meu amigo é um homem destemido, incapaz de, numa situação difícil, virar as costas e me deixar sozinho. Além disso, conhecia bem aquela região dos Dembos e todas as sanzalas, pois fora durante anos delegado de saúde do Quibaxe. O risco é de facto muito grande, mas como negar socorro a soldados que, para virem em nosso auxílio, deixaram a família em Portugal e, de repente, são atirados para as matas impenetráveis do Norte de Angola, entregues a si próprios, sem saberem onde estão e onde está o inimigo. A prová-lo está a morte dos nove soldados.
- Podem contar comigo. Digam a hora a que partimos...
- Se já comeu alguma coisa, quanto mais cedo melhor.
E, assim, o Dr. Assoreira na sua carrinha Chevrolet com ajudante bailundo e eu no jipe, também com um ajudante, estamos preparados para uma missão que nos pode custar a vida. Entretanto um relâmpago forte seguido de uma chuvada intensa (a bula messoque) atrasa por pouco tempo a partida. O sol intenso logo aparece.
Arrancámos os dois, o Médico à frente e eu logo atrás. Percorremos alguns quilómetros, já passamos o Luege e estamos a deixar a anhara de capim e prestes a entrar nas matas do desfiladeiro que nos leva, pela estrada nova, ao Dambi-Angola. Surpresa das surpresas, um a um os três jipões do pelotão desaparecido estão, agora, parados ali à nossa frente. São homens marcados por um enorme sofrimento físico e psicológico. A Upa, com a metralhadora roubada, aterrorizou-os completamente. Todos vêm traumatizados; o jovem alferes, esse vem totalmente transtornado. Mesmo assim todos sorrimos de alegria, não evitando que uma ou outra lágrima escorra pela cara abaixo.
Demos a volta, guiando, agora, o pelotão até ao Quitexe. Há que arranjar alojamento e comida para estes homens. Comer, vão ao bar do Pacheco, e eu, a pedido do tenente, vou tentar arranjar sitio onde possam dormir. Lembrei-me do armazém da casa do Álvaro Pacheco, em frente à minha, que estava desocupado. E agora.... os soldados vão dormir em cima do cimento? Fico preocupado e, então, resolvo ir à minha loja e trago todos os cobertores que estão nas prateleiras, uns 60 ou 70. Cada soldado fica com um para por no chão e outro para se tapar, pois durante a noite arrefece e os mosquitos aparecem zumbindo à roda da cabeça. Durante três dias ninguém chateia os homens, que bem precisam de descansar e recuperar do trauma psicológico que os afecta.