Como facilmente se compreende, sendo os transreceptores P19 coevos da 2.ª Guerra Mundial (1939-45), nos anos sessenta estavam a ficar tecnicamente bastante obsoletos. Outros modelos mais avançados tinham entretanto entrado no circuito comercial da especialidade. Pelo que no Quitexe em 1963, se não estou em erro, se procedeu a substituição dos velhos e saudosos P19 por volumosos transreceptores RCA de cristais fixos de operação muito semelhante à utilização de um telefone normal. Se bem me lembro, os aparelhos em foco apenas permitiam a utilização de duas ou três frequências fixas: através de uma era possível transmitir de modo a que o sinal pudesse ser ouvido num rádio doméstico de forma não só absolutamente perceptível, mas com a qualidade do som irradiado por uma qualquer emissora; através de outra, o sinal chegava aos rádios domésticos de forma confusa e insusceptível de ser descodificado (funcionava como um canal secreto); e a terceira frequência parece-me que funcionava como canal de emergência. Mas tudo o que acabo de referir deve ser aceite com alguma reserva. Não esqueçamos que já lá vão quase cinco décadas. E praticamente não cheguei a operar com o novo transreceptor. Mal ele foi instalado, parti eu para Luanda a fim de iniciar o cumprimento do Serviço Militar.
Militares portugueses em operações na Serra da Canda junto à fronteira com o Zaire em 1966. O transreceptor patente na foto era alimentado por um dínamo impulsionado por pedais, à semelhança de uma bicicleta de ginástica sem rodas. O signatário está em 1.º plano segurando o microfone.
A recordação mais viva que tenho do novo transreceptor é a do enorme tamanho e a qualidade e intensidade do som, que se fosse recebido no máximo através do altifalante associado (e não através do acessório tipo telefone) podia ser ouvido quase no meio da vila do Quitexe. A esta distância temporal, hoje tenho também a convicção de que a substituição dos velhos e saudosos P19 pelos volumosos transreceptores RCA de cristais fixos, em termos de comunicação à distância através do éter, significou igualmente o fim de um certo pioneirismo romântico e de uma época irrepetível.
Em matéria de telecomunicações, eu não conheci a vila do Quitexe antes de 15 de Março de 1961. Os que a conheceram directamente, por lá terem nascido ou trabalhado e porventura visitem de vez em quando este site, poderão também deixar aqui o seu testemunho. Todavia, numa publicação de 1959 (Dicionário Corográfico Comercial de Angola…, 4.ª Edição, Edições Antonito, Luanda – Angola) encontrei sobre o Quitexe, entre outra informação, o seguinte:
“C.T.T.: Est. F. P. (Estação telefono postal) de 3.ª, com rádio transreceptor P. 19, comunicando oficialmente com Camabatela; enc. post. ord. (Encomends postais ordinárias) e todos os demais serviços em Carmona. A pov. (povoação), sede dum posto com grande movimento, ambiciona ter uma est. T. P. (Estação telégrafo postal) de 2.ª, com pessoal privativo dos C.T.T. e tem condições para isso. É servida pela carreira de autocarros entre Luanda e Carmona.”
Entre 1959 e 1961, não sei se quanto a telecomunicações houve qualquer evolução. O que sei, por experiência directa, é que durante o tempo em que trabalhei no Quitexe (1961-63) o serviço de correio era assegurado pela própria Administração (subíamos os dois ou três degraus de acesso e, em vez de seguirmos em frente em direcção à secretaria, entrávamos na porta à esquerda).
Ali havia a possibilidade de enviar e receber correio normal, registado e até de receber e enviar telegramas através do transreceptor P 19 que, em horário estabelecido, se ligava à Central dos C.T.T. de Carmona. Tal como, se tivermos em conta a transcrição supra, já acontecia em 1959 e muito provavelmente também sucedeu no curto período de tempo que se seguiu até 15 de Março de 1961.
A ditar um telegrama para a Central dos Correios do Uíge
Como podemos constatar, quando deixei o Quitexe em Setembro de 1963, a antiga ambição da vila de ter “uma est. T. P. (Estação telégrafo postal) de 2.ª, com pessoal privativo dos C.T.T.” continuava por realizar.
Entretanto, creio que no início de 1963, era instalado o primeiro posto público de telefone no Quitexe. Passou a funcionar também na Administração e, à semelhança do serviço “F. P.” (telefono postal), também ligava a vila à Central dos C.T.T. de Carmona. Os telegramas, que anteriormente eram enviados e recebidos pelo “rádio transreceptor P. 19”, passaram a ser ditados de e para Carmona pelo telefone.
O serviço telefónico era assegurado dia e noite. Durante algum tempo, eu próprio pernoitei na Administração, precisamente no compartimento onde estava o telefone, para assegurar o dito serviço. Recordo-me de que, estando ali sozinho, para quebrar a monotonia entretinha-me a falar com o funcionário que desempenhava idêntica tarefa na Central dos C.T.T de Carmona. Falávamos durante horas e horas. Às vezes, através do sistema de comutação da Central (o serviço de comutação de ramais ainda era inteiramente manual), aparecia um terceiro ou terceira participante na conversa. Das relações do meu interlocutor. Conversámos tanto, tanto… e nunca cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Já nem do nome me lembro!
Não recebia qualquer compensação pecuniária por assegurar aquele serviço. No dia seguinte de manhã, com a abertura ao público da Administração, iniciava as minhas tarefas normais de funcionário administrativo. Daquela experiência ficou-me apenas a possibilidade única de, passado quase meio século, poder afirmar que a linha telefónica, estendida entre Carmona e o Quitexe, em 1963 esteve durante muitas noites à minha inteira disposição. Utilizava-a como uma espécie de Internet. A única limitação era o sono. Não foram poucas as vezes em que deixei o meu interlocutor “pendurado”. Vencido pelo cansaço e pela imperiosa necessidade de dormir, ausentava-me involuntariamente para o reino do deus Morfeu.
Microfone de um transreceptor P 19 Voltando aos saudosos transreceptores P19, em muitas ocasiões as condições de exploração eram francamente más. Admitindo que num determinado momento estávamos a operar em 5.3, descer por exemplo para 5.0 ou subir para 5.5 era muitas vezes a solução. Contudo a exploração numa frequência indevida atrapalhava por vezes outros operadores de rádio e, além disso, havia a autoridade que vigiava o espaço radioeléctrico. Como se sabe um bem escasso. Por isso, de vez em quando, apareciam na Administração do Concelho notas do Serviço de Vigilância do Espaço Radioeléctrico de Angola (não sei se esta designação está correcta) a lembrar as frequências que legalmente nos estavam atribuídas.
Nós tomávamos conhecimento e no dia seguinte, se a urgência do serviço e as dificuldades eventualmente presentes no espectro radioeléctrico em o efectuar assim o ditassem, voltávamos a operar numa qualquer frequência que encontrássemos disponível e livre de ruído.
Qualquer operador de rádio sabe por experiência própria que as interferências podem ser devidas a condições atmosféricas adversas. E que podem variar muito ao longo do dia. Essencialmente por se alterarem as condições de propagação das ondas hertzianas. Mas, inúmeras vezes, tinha-se a impressão de que as dificuldades de transmissão e recepção eram causadas por interferências propositadas. Seriam interferências hostis provocadas intencionalmente pelo conhecido método de empastelamento de comunicações, que basicamente consistia então em utilizar um emissor mais potente, sediado por exemplo num país vizinho, para lançar ruído contínuo na frequência de uma rede rádio em horário de laboração?
Antigo terminal de telefone -CP Telefone analógico
Com certeza que em matéria de comunicações à distância, as coisas no Quitexe passados tantos anos estarão hoje muito diferentes. Seria interessantíssimo que algum amigo daquela vila ou ali a residir deixasse aqui consignado o panorama actual da estimada vila quanto a telecomunicações.