Natal 61
Passei a noite de consoada e o dia de Natal de 1961 em Aldeia Viçosa. Foi uma estopada. A ideia mais enraizada que me ficou foi a de ver o pessoal, particularmente triste por se encontrar longe da terra e da família. Viver a quadra natalícia, em que desde há cerca de dois mil anos, se apregoa "Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade e Glória a Deus nas Alturas", em guerra é de todo deprimente.
Não me recordo de que durante aqueles dias se tenham verificado actos hostis na área do nosso posto administrativo. Creio que os guerrilheiros, seres humanos como nós, provavelmente pensaram que a santidade daqueles dias não devia ser profanada com actos bélicos.
Na altura ouvia-se muito a rádio. A ideologia oficial era constantemente repetida. A canção "Angola é Nossa" era passada a todo o momento e o mesmo acontecia com as interpretações do género daquela em que o Fernando Farinha cantava o incansável e corajoso soldado português com as "fardas em farrapos".
A Emissora Nacional também era muito ouvida. Não escondo que no meu imberbe espírito calava fundo a voz do locutor quando dizia: "Aqui Lisboa, Serviço Ultramarino da Emissora Nacional". Para mim, na altura completamente cego em matéria política como em quase todos os outros assuntos do mundo do conhecimento, era a prova de que não estávamos sós.
Lembro-me também dos programas de um tal Ferreira da Costa. Para os incautos como eu, o homem era convincente. Parece que as suas crónicas até fizeram com que muitos portugueses metropolitanos tivessem tomado a resolução de emigrar para Angola. Gente que começou a ser designada pelos discordantes do regime mais críticos de "Tropa do Ferreira da Costa".
Em relação à Emissora Nacional havia igualmente aquele programa intitulado "Rádio Moscovo não fala verdade". Enfim, sem que então eu de tal tivesse consciência, era a guerra da propaganda. Que, acabava por produzir um efeito importante nos ouvintes. Abrindo os olhos a uns. Aumentando a cegueira de outros. Como era o meu caso.
A Rádio Brazaville também era muito ouvida. O discurso repetido dos meios de comunicação portugueses começava a levantar suspeitas de que, do apregoado à realidade, havia um fosso enorme. Daí o ter começado a impor-se como princípio generalizadamente aceite a ideia de que, se quiséssemos saber o que realmente se passava nas colónias portuguesas, o melhor era recorrer às emissoras estrangeiras então captadas em Angola.
Arlindo de Sousa