Domingo, 14 de Setembro de 2008

Recordações do Quitexe 61/63 por Arlindo de Sousa - Parte VII

 

Poucos dias depois de ter chegado a Aldeia Viçosa, o Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França disse-me que um funcionário administrativo, para bem desempenhar a sua função, tinha de conhecer fisicamente a respectiva área de exercício. Mas, como na altura, por falta de segurança, não era possível percorrer os diversos itinerários sem protecção militar, recomendou-me que aproveitasse as oportunidades em que a tropa instalada em Aldeia Viçosa se deslocava em patrulhamento.
A primeira e julgo que única deslocação, com a finalidade referida, fi-la à Fazenda Luís Pereira. Eu viajava ao lado do condutor de um Jeep particular, equipado com uma blindagem artesanal apenas segura contra canhangulos, caçadeiras e armas de pequeno calibre. Uma bala de Mauser 7,9 mm por exemplo, disparada a uma distância conveniente, acho que furava aquilo tudo. Porém, como geralmente os grupos sublevados disparavam de longe, sempre era melhor que nada.
A minha arma era uma pistola-metralhadora FBP de 9 mm e à cinta, numa espécie de coldre, usava uma Walter de 7,65 mm. Aquelas armas para mim eram quase inúteis. Com 18 anos de idade, não possuía qualquer treino militar. No Posto, o Chefe França tinha-me apenas explicado sumariamente o funcionamento.
O único conhecimento que eu tinha de armas baseava-se numa pistola Star 6,35 mm que eu possuía clandestinamente quando vivia em Luanda. E o treino de fogo tinha-se cingido a um disparo experimental feito no quarto onde dormia na Vila Clotile e que teve como consequência furar uma mala e quase inutilizar algumas peças de roupa e umas fotografias que tinha lá dentro. Ainda hoje possuo uma das fotos afectadas.
A coluna militar, cujo efectivo não ultrapassava o de uma secção, se não me engano, era constituída apenas por uma jipão atrás e por um Jeep à frente. A minha viatura viajava no meio.
O armamento era constituído por espingardas Mauser 7,9 mm, uma bazuca, talvez um morteiro, já não me lembro bem, uma metralhadora Dreiser e uma metralhadora Breda montada no Jeep da frente em que viajava o comandante da coluna. Na circunstância um alferes, cujo nome já não recordo com precisão. Parece-me que era o alferes Reynolds, mas sinceramente não tenho a certeza (podia ter sido outro). E claro as habituais granadas de mão.
Em determinado ponto do trajecto, o alferes abrandou e indicou-me com a mão um sítio sobranceiro de mato cerrado de onde dias antes tinham sido atacados. Já não muito longe da Fazenda Luís Pereira (não sei precisar a distância), há uma subida e do lado direito existia uma mata muito fechada. Os motores das viaturas da coluna roncavam sob um sol escaldante deixando um rasto de poeira. Daquele pó fino que se entranha por todo o corpo misturando-se com o suor.
Inesperadamente, soou da mata fechada, acima referida, uma vasta fuzilaria. A tropa reagiu de imediato. Os soldados saltaram fazendo um fogo nutrido e, enquanto alguns militares ficavam de guarda às viaturas, outros meteram-se resolutamente pelo mato dentro disparando sem cessar. Com o objectivo de, se possível, apanhar os guerrilheiros. Estes num ápice deram às de vila Diogo. Era mais um ataque do género "flagela e foge". Mas o local entretanto tinha-se tornado num verdadeiro Inferno: o fogo desencadeado pelas granadas incendiárias ultrapassava o cimo do arvoredo.
Eu, como resposta imediata aos disparos dos guerrilheiros, ainda fiz uns tiros com a FBP na direcção da mata. A partir da janelinha da blindagem da viatura blindada que me transportava. Mas a minha pistola-metralhadora deixou logo de funcionar. Vim depois a saber que, com alguma frequência e naquele tipo de arma, o gás resultante da explosão do invólucro não conseguia fazer recuar suficientemente a culatra. Pelo que, em tais circunstâncias, só era possível rearmar a culatra fazendo o recuo manualmente. Enfim, não estava minimamente preparado para aquele género de situações.
Terminada a emboscada, e feito um breve balanço, verificou-se que nenhum dos elementos da coluna tinha sido afectado. Descobriu-se no entanto que o jipão foi atingido por uma bala que, depois de ter furado a chapa, ainda atravessou uma manta dobrada em que um soldado ia sentado. Conclusão: só por mera sorte, não tivemos ali um grande problema. Mas, como é costume dizer-se, tudo corre bem quando acaba bem. Foi o caso. Do lado dos guerrilheiros, não sei o que se teria passado. Contudo é bem provável que todos tivessem escapado sãos e salvos. Se assim foi, ainda bem. Ficámos todos a ganhar!
Retomando a marcha, passado muito pouco tempo chegámos à Fazenda Luís Pereira. A devastação ali era, como em Aldeia Viçosa, também total. Parecia que uma serra gigantesca tinha cortado as paredes das instalações pela raiz. Tudo rebentado, demolido e enegrecido, ferros retorcidos e tubos do que tinha sido a canalização de água incrivelmente espatifados. Pelo grau de destruição observado, é bem provável que também ali a aviação tenha molhado a sopa. Como em Aldeia Viçosa.
Regressados ao aquartelamento, felizmente sem quaisquer outros inconvenientes, relatei em carta, enviada seis dias mais tarde para a terra, a experiência do primeiro ataque por mim vivido. Do seguinte modo:
 
Aldeia Viçosa, 18 de Setembro de 1961.
 
No passado dia 12, às nove e meia da manhã, na estrada que liga Aldeia Viçosa à Fazenda Luís Pereira e quando sob escolta de uma secção de tropa da Companhia de Caçadores 89, foi o meu baptismo de fogo. Os atacantes utilizaram o método da emboscada traiçoeira. Os nossos militares reagiram com grande coragem e determinação, pondo os inimigos em fuga.
Arlindo de Sousa
publicado por Quimbanze às 23:18

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