Sábado, 12 de Janeiro de 2008

Luís Pacheco

 

A recente morte do escritor Luís Pacheco avivou-me a memória para uma das suas publicações que possuo, “Textos Malditos”, que reúne uma série de textos publicados antes do 25 de Abril, a maior parte deles apreendidos, com processos até no Tribunal Plenário.

Editado em 1977 pelas edições Afrodite possui um capítulo – Depoimento de uma Angolana – lançado em “stencyl” por Luís Pacheco, em 1961, poucos meses depois do início da guerra. O texto é da autoria de Maria Alice Veiga Pereira e reúne as observações que foi anotando ao longo dos trinta anos que, na altura já levava de vida em Angola.

Filha de um quadro administrativo - o pai exerceu durante anos o cargo de Chefe de Posto em Ambaca e em várias outras regiões da colónia

 

“Nasci em Angola, filha de pais europeus. Há trinta anos que ali vivo, no meio das mentiras convencionais que nos são impostas por um regime social odioso. Mas parece-me que chegou a hora de dizer algumas verdades.

 

Filha de um funcionário do quadro administrativo de Angola, casada com um funcionário de um organismo corporativo da colónia, tendo eu própria ali exercido as funções de professora primária oficial, presenciei e tive conhecimento de muitos factos que julgo ser bem útil trazer ao domínio público.

Meu pai exerceu durante anos o cargo oficial de Chefe de Posto de Ambaca e em várias outras regiões da colónia. Ser Chefe de Posto em Angola é ser um pequeno rei absoluto.(…)

 

O castigo corporal é ainda o grande método adoptado. Eu vi um negro, centenas de negros, serem assim castigados pelos processos mais bárbaros que é possível imaginar. O Chefe de posto dá ao sipaio ordem para começar. Este pega numa grossa palmatória e vai batendo. Um sipaio, armado de um chicote, dá uma forte chicotada ao negro de cada vez que este encolhe a mão. Ás cinquenta palmatoadas é costume não se poder continuar: o sangue esguicha e a pele das mãos está toda agarrada à madeira. Mas ainda há tantos sítios onde se pode bater! As palmas dos pés aguentam ainda mais. E depois, o negro é deitado no chão de rabo nu para o ar, é-lhe colocada uma sarapilheira molhada, para a pele resistir melhor, e a pancadaria recomeça. Depois disto, não há realmente mais onde bater. Um pobre farrapo humano, ensanguentado, meio morto, está aos pés de um governo que se gaba de praticar os melhores métodos colonizadores e de assimilação rácica de toda a História!

 

Aprendi com os meus pais que o negro é um homem igual a todos os outros, com os mesmos direitos e os mesmos deveres. Durante trinta anos vi-os serem tratados como seres inferiores e desprezíveis, como pobres animais irracionais. (…)

Recordo-me de outro episódio que mostra bem o racismo entranhado dos brancos de Angola. Numa viagem que fiz à Metrópole, vinham comigo uns moços que nunca tinham saído de Angola. Desembarcaram na Madeira e quando voltaram para o barco estavam profundamente chocados por terem encontrado brancos descalços, a pedir esmola. E então, realmente consternados, comentavam: “Palavra, nunca pensei que houvesse pessoas com fome, descalças, a esmolarem uns tostões para comer”. E como eu lhes dissesse se os negros da terra donde vinham andavam calçados, se nunca tinham visto em Angola negros a morrerem de fome, eles responderam-me com toda a naturalidade, sem qualquer intenção velada: “Vimos, pois claro, mas eram pretos. Agora pessoas, brancos, compreende, é outra coisa.”

Tinham o sétimo ano dos liceus e vinham frequentar a Universidade. Eram bons moços, apenas tinham ouvido dizer desde pequenos que pessoas são brancos. Nunca tinham deparado com o problema da miséria entre brancos. Mas a miséria dos negros não lhes podia ser desconhecida: só na Baixa do Cassange morrem todos os anos centenas de negros à fome. Aí o problema é o algodão”.(…)

 

Descreve, depois a irracionalidade da plantação do algodão, do trabalho escravo disfarçado de contrato, etc, etc.

Lendo estes textos escritos nos anos 50, anteriores, portanto, à revolta na Baixa do Cassange e aos levantamentos seguintes é imperioso perguntar como é possível que as autoridades coloniais não se apercebessem do caldo de contestação social que estavam a cozinhar e que viria a explodir em revoltas sangrentas.

publicado por Quimbanze às 09:48

link do post | comentar | favorito
1 comentário:
De bizantino a 7 de Agosto de 2009 às 20:52
Como sempre em Portugal só depois de morto se dá o valor, o que infelizmente não é o caso. Gostaria de deixar uma sugestão de leitura, o conto " Maternidade " de Luis Pacheco, é um exemplo que mesmo pobre se pode ser feliz, um conto de uma sensibilidade genial.

Comentar post

.OUTRAS PÁGINAS

.posts recentes

. Novo Plano Urbanístico do...

. Rui Rei 1955 - 2018

. Batalhão de Caçadores 3 e...

. Município de Quitexe nece...

. O Nosso Bondoso Director

. Associação da União dos N...

. Governador do Uíge emposs...

. Plano Urbanístico do Quit...

. Fotografias do Quitexe - ...

. 15 de Março - "Perderam-n...

.arquivos

. Abril 2018

. Março 2018

. Junho 2017

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Novembro 2014

. Março 2014

. Janeiro 2014

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Janeiro 2013

. Setembro 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

.mais sobre mim

.Abril 2018

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

.pesquisar

 

.subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub