Casa do cantoneiro em 1961 (desconheço o autor destas fotos)
Casa do cantoneiro em 1967/Transmissões/CCS 27/07/1967 (Fotos José Oliveira - César)
Jusé Bule - Jornal de Angola
Depois da mandioca já descascada ter ficado num recipiente com água e fechado, dona Teresa Augusto acredita que o tubérculo está pronto para ser transformado em bombó. Com as mãos, esmaga o produto e espalha-o por cima de um tapete feito de sacos de serapilheira.
Depois de secas, trabalha as migalhas para serem transformadas em fuba de bombó. Este trabalho manual, que se repete um pouco por toda a região, tem sido difícil para os produtores locais, que defendem a instalação de moagens eléctricas na aldeia do Dambi-à-Ngola, município do Quitexe.
Teresa Augusto disse, ao Jornal de Angola, que a situação não é assim tão grave porque na despensa da sua casa tinha o velho pilão, que sempre utilizou na transformação do bombó em fuba.
Mas, sublinhou, as moagens eram meios que relançavam a produção industrial da fuba de bombó, parte importante da dieta alimentar da região e da maioria do país.
“A população do Dambi está a produzir muita mandioca, banana, batata-doce e junguba”, revelou, acrescentando que é tempo de se criarem pequenas unidades industriais para a sua comercialização em condições melhores. Dambi tem uma associação de 178 camponeses, que aguardam financiamento para criar pequenas unidades industriais.
“Já entregamos os processos ao BPC e aguardamos ansiosos que a situação seja resolvida”, disse, ao Jornal de Angola, o soba do Dambi.
Pensamento Joaquim lembrou que a população local vive momentos de paz absoluta, mas que ainda enfrenta algumas dificuldades porque na aldeia não há energia eléctrica, nem água potável.
A única escola do ensino primário que funciona nesta localidade da comuna da Aldeia Viçosa não tem capacidade para acolher todas as crianças em idade escolar. Mais de 200 estudam em salas de aulas no Dambi, mas há outras centenas que o fazem ao ar livre, debaixo de árvores.
Aldeia Viçosa - 1969
Pensamento Joaquim disse, ao Jornal de Angola, que há um grupo de crianças e jovens que concluiu o ensino primário e é obrigado a percorrer, a pé, 15 quilómetros, todos os dias, para poder estudar na escola secundária na sede municipal do Quitexe.
“Por falta de transportes públicos ou de táxis, as crianças que terminam o ensino primário são obrigadas a andar a pé até à vila do Quitexe para darem continuidade aos estudos”, lamentou.
Uíge - A construção da central hidroeléctrica do Luquixe Dois, localizada a 15 quilómetros a leste da cidade do Uíge, paralisada desde 2009, reinicia em Julho deste ano, avançou hoje (quarta-feira) o engenheiro da empresa responsável pela empreitada António Bibe.
Por José Bule
A Lagoa do Feitiço tem uma história que faz arrepiar os mais ousados. Ngungo Indua era o nome de uma aldeia que ficou submersa devido a uma “chuva miúda”, muito branda. Hoje só é visível um grande lençol de água parada. Ninguém vê vestígios de casas mas elas estão lá e guardam fantasmas que aparecem nas manhãs de cacimbo e nas noites em que chora a hiena.
Os mais velhos dizem que a aldeia ficou submersa pela “chuva miúda” e muito branda, há muitos séculos, antes mesmo da chegada dos portugueses ao Reino do Congo. O silêncio na Lagoa do Feitiço é absoluto. A paisagem parece uma obra de arte pintada por um génio desconhecido. Quem quiser conhecer esta maravilha da natureza tem de ir ao Dambi a Ngola, na Aldeia Viçosa, município do Dange-Quitexe.
Isaac João Capita, o sekulo da aldeia Dambi a Ngola, despejou vinho, maruvo e gasosa na lagoa para alegrar o casal de sereias que lá habita. E fez uma prece: “eu vim informar que trouxemos aqui os nossos visitantes. Eles querem conhecer e descobrir a tua história, por isso trouxemos o maruvo, o vinho e a gasosa, para vos alegrar e para que permitam a estes viajantes realizar o seu trabalho sem problema”.
O sekulo conta à reportagem do Jornal de Angola a história da Lagoa do Feitiço: “tudo aconteceu quando uma manhã, na aldeia do Ngungo Indua, onde viviam centenas de pessoas, apareceu um homem defeituoso.
Do seu corpo escorria água e pus. Ele cheirava muito mal e estava com sede. Mas como todos sentiam nojo dele, fecharam-lhe a porta na cara, ninguém lhe deu água”.
Os adultos fecharam a porta ao viajante doente. Mas duas crianças, um rapaz e uma menina, que estavam sozinhos em casa, prontificaram-se a atendê-lo como devem ser atendidos todos os viajantes: com amizade. Os meninos serviram-lhe água num copo limpo.
Depois de beber a água ele disse que estava satisfeito mas deixou a seguinte recomendação: “quando o papá e a mamã chegarem, avisem-nos para recolherem todas as vossas coisas e irem para a montanha do Kituto”. Assim aconteceu. E quando veio a “chuva miúda e muito branda, a aldeia desapareceu. A montanha do Kituto fica a cinco quilómetros desta lagoa. Isto aconteceu mesmo, não é mentira”, disse Isaac João Capita.
A grande nuvem
Os pais das crianças chegaram e ouviram a mensagem. Embora com relutância, transportaram toda a mobília, porcos, galinhas e cabras para a montanha do Kituto. O viajante recomendou para que não dissessem nada a ninguém, e assim fizeram. “Quando chegaram à montanha viram formar-se uma grande nuvem e a chuva começou. Era uma chuva miúda que caiu apenas em cima da aldeia. Casas, pessoas e animais desapareceram para sempre na lagoa que se formou. As pessoas que viviam na aldeia, mas que no momento em que a chuva caía estavam distantes, regressaram a correr como se tivessem sido chamados de emergência e também morreram afogados”, disse o sekulo.
Kipita kya Nzambi, pai das crianças, nem queria acreditar no que estava a ver.
Lagoa do Feitiço
José Dinis, um fazendeiro português, levou a família e os seus capatazes à lagoa. Ali ficaram fazendo um piquenique. Comeram e beberam alegremente até ao momento em que apareceu um velho que vivia numa aldeia vizinha da lagoa. O ancião alertou o fazendeiro para o perigo que corriam.
“O fazendeiro não acreditou. Pegou numa moeda e atirou-a para a lagoa dizendo em voz alta que queria ver um milagre. Não passaram muitos minutos e apareceu, de repente, uma menina morta. Estava dentro de um caixão que flutuava sobre a água. O fazendeiro ficou assustado e fugiu para casa”, conta o sekulo.
Mas à noite a desgraça bateu-lhe à porta. A filha morreu sem mais nem menos. Foi a partir daí que o fazendeiro atribuiu o nome de “Lagoa do Feitiço” à aldeia submersa. “Antigamente nós chamávamos esta lagoa Ujia ya Mbuila. Já engoliu muita gente”, disse. Um dia os mais velhos da aldeia que está na montanha Kituto reuniram-se para resolver o assunto e foram ao local: “os velhos levaram muita comida e bebida para pedir perdão às sereias por todo o mal que os nossos antepassados fizeram, para que nada mais aconteça”, contou.
O casal de sereias
A aldeia tem uma associação constituída por 178 agricultores que aguardam financiamento. A única escola do ensino primário não tem capacidade para acolher todas as crianças em idade escolar.
Por falta de transportes públicos, quando as crianças terminam o ensino primário, são obrigadas a andar a pé, até ao Quitexe, onde dão continuidade aos estudos. Deve ser efeito da Lagoa do Feitiço. Mas a reconstrução nacional vai chegar e Dambi a Ngola e então até as sereias ficam contentes.
Passam, agora, 50 anos sobre a revolta da UPA no norte de Angola. Centenas de portugueses e milhares de angolanos mortos. Uma guerra que se prolongaria 13 anos e continuaria, de outra forma, até ao novo milénio. A zona do Quitexe foi das primeiras a ser confrontada com este cortejo de desgraças. No texto anexo os autores descrevem as situações dramáticas que viveram e episódios que ajudam a compreender os caminhos que levaram àquela tragédia imensa. Textos fundamentais para a compreensão do conflito, escritos de forma tão impressiva a que não ficamos indiferentes devido à magnitude do drama humano e social então vivido, à sinceridade que se pressente no que os autores nos dizem e à forma simples, viva e directa como estão escritos.
João Nogueira Garcia
António Manuel Pereira Guerra
O dia-a-dia numa fazenda do Quitexe
Estamos ainda na época das chuvas que, quanto mais intensas, mais beneficiam uma boa floração do café. Os dias são todos iguais nesta época: é preciso capinar todo o cafezal dado que as ervas crescem rapidamente pois o calor intenso e a farta humidade no solo não dão tréguas ao pessoal. Cada contratado capina diariamente120 pésde café.
Junto às casas, os armazéns do café e a casa das máquinas de descasque constituem o sector laboral. No acampamento, situado no morro em frente, à beira da mata, vivem os contratados do Sul, em número variado conforme a época do ano: entre 60, no tempo das chuvas e 100, na época do cacimbo, altura da colheita do café. Entretanto tinha sido inaugurada no Quitexe uma escola primária tornando possível, aos colonos, terem junto de si os filhos em idade escolar.
Este é o cenário que dia a dia se vive na Roça Quimbanze de João Nogueira Garcia, a 3 Km da povoação do Quitexe, semelhante a todas as fazendas de café da região.
Relata-nos João Garcia:
É neste correr do dia-a-dia que numa das minhas idas ao Quitexe encontro o Chefe do Posto Nascimento Rodrigues que diz precisar de falar comigo, confidencialmente:
Ele, Chefe do Posto, tinha sido alertado pela PIDE que estavam a ser distribuídos panfletos subversivos nas sanzalas para os lados do Zalala e que esses panfletos eram de uma organização política designada por U.P.A. que significava União dos Povos de Angola. O Chefe esclareceu que estava a contactar todos os fazendeiros para colaborarem com a PIDE dando-lhe todas as informações que fossem colhendo. Respondi-lhe que de tudo que eu viesse a saber lhe daria conhecimento a ele e não à PIDE, visto ser organização que sempre repudiei. Esta conversa teve lugar no dia 5 de Março de 61.
Entretanto as férias escolares haviam começado e, por isso, não era necessário levar os miúdos ao Quitexe.
No dia 10, escrevo uma carta à minha Tia Marquinhas, carta essa que mais tarde recuperei e que agora transcrevo:
Dia de Comunhão no Quitexe. À esquerda o Tó Guerra entre os irmãos Baptista (Manuela e João) e à direita os irmãos Barreiros (Graça e Acácio, futuro deputado da UDP e PS)
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(...) Desculpe a Tia o só hoje dar notícias mas como deve calcular estas vidas, primeiro a baixa do café que atingiu um preço que pôs toda esta região à falência e agora surge o inevitável problema político, para o qual os governantes resolveram solucioná-lo pela força. Seremos nós, os do interior, homens, mulheres e crianças as principais vítimas, pois além de nos encontrarmos indefesos, por mil e uma razões não podemos abandonar esta boa mas também maldita terra. Em Luanda parece que os encontros têm sido renhidos e que já houve centenas de mortes, mas mesmo lá, por enquanto, parece que os ataques são só dirigidos contra a polícia e o exército e que das forças revoltadas fazem parte brancos. Seria uma sorte pois, se vamos para a questão racial será uma desgraça, pois será o caso de mata que é branco e mata que é preto. Mas parece-me que não teremos sorte pois esses cavalheiros daí para salvarem a pele não hesitarão em nos sacrificarem. (...)
Relendo agora a carta, quase me surpreendo com a clarividência com que expus a situação política vivida em Angola, bem como o alerta premonitório para o que se passaria cinco dias depois.
Ao fim de semana as famílias iam passear à Lagoa do Feitiço, a escassos 5 Km do Quitexe. Na foto da direita, ao centro, com a armadilha de peixes na mão, está o Zézito Guerreiro que viria a ser morto no 15 de Março.
Dia 15
À semelhança de todos os dias, mal despontam os primeiros alvores da madrugada, o capataz acorda o pessoal, batendo com o bocado de mola da carrinha num semi-eixo partido pendurado num galho duma messumba. Ao som das pancadas o pessoal do acampamento começa a formar a fim de serem distribuídas as tarefas para o dia de trabalho.
Quando saio de casa já só o vejo ir com o pessoal a caminho da plantação.
Da casa avistamos a estrada que, vinda do Uíge ou do Quitexe, dá acesso à fazenda continuando depois para S. José do Encoje e Ambuíla. Vimos, então, um jipe com o Chefe do Posto Nascimento Rodrigues ao volante. No banco traseiro o Abílio Guerra e o Jaime Rei. Eram afinal os três membros da Junta Local. Muito preocupados, o Chefe do Posto chamou-me de lado e disse-me que de noite tinha havido sarilho na fazenda do Zalala e que o gerente tinha conseguido fugir e ir para o Uíge chamar a tropa e que constava que muitos pretos haviam fugido da fazenda. Iam ver o que se estava a passar nas fazendas e que depois voltavam a passar por cá.
Não vá para o Quitexe. Há lá muitos mortos!
Lá partiram e eu desloquei-me para o Quitexe passando pela sanzala Talambanza onde iria buscar o carpinteiro Jorge Panzo. A sanzala, que ficava no cruzamento da estrada para o Uíge com a da fazenda, estava deserta. Nem Jorge, nem meio Jorge! Mas um capita vem apressado dizer-me:
Não vá para o Quitexe pois há por lá muitos mortos! O Dr. “Talambaza” (Almeida Santos) acaba de passar para tentar chegar ao Uíge e trazer a polícia!
De imediato dou meia volta ao jipe e corro a grande velocidade para casa passando pela fazenda do Armindo Lenita onde ele, a mulher e os dois filhos podem correr perigo. Chegado à fazenda chamo a Aline e digo-lhe para preparar cobertores pois podemos ter necessidade de fugir para a mata.
Mando, também, chamar o Alcindo e o Tavares, os empregados brancos da fazenda.
De volta o Chefe do Posto, o Abílio Guerra e o Jaime Rei vêm horrorizados dizendo que há mortos nas fazendas. Eu tenho que lhes dizer que no Quitexe também há mortos; os três tinham lá deixado as mulheres e os filhos e lá partiram, como loucos, sem saberem o que iriam encontrar.
Entretanto, no Quitexe
O António Manuel Guerra, então com dez anos, quando se levantou já não viu o pai Abílio Guerra. Tinha saído cedo com o chefe de posto, o Sr. Jaime Rei e dois cipaios do posto. Na véspera o chefe tinha-lhes pedido que os acompanhassem para os lados do Zalala, pois tinham fazenda para aqueles lados e iriam efectuar contactos com os trabalhadores das diversas roças dessa região pedindo-lhes que, caso aparecessem elementos estranhos ou suspeitos, os prendessem e mandassem recado ao posto do Quitexe.
- A minha mãe bem pediu ao meu pai que não fosse, mas de nada lhe valeu (pressentimentos de mulheres).
Recorda agora:
No final de 1960, tinha eu 10 anos, já qualquer coisa de anormal se fazia sentir, pois as festas familiares (Natal e passagem de ano) não foram como nos anos anteriores. As reuniões de família decorriam sempre com as armas em presença.
No Quitexe estavam a passar férias a minha irmã (que estudava em Luanda no Colégio das Freiras), e em casa do meu tio Augusto, onde também viviam os meus avós (António Inocêncio Pereira e Joaquina Pereira), estavam as minhas primas Milu e Juju, filhas do meu tio Celestino e tia Maria (que na altura estavam em Luanda).
Eu levantei-me cedo, como era hábito, e fui a casa do tio Augusto encontrar-me com a Milu e Juju, para as desafiar para irmos brincar. Como elas ainda estavam a matabichar, esperei por lá um pouco.
A minha mãe encontrava-se em frente da nossa casa, a curta distância da casa do tio Augusto, a podar umas roseiras de um canteiro de flores. A minha irmã ainda dormia.
Contou depois a minha mãe, que quando soaram as badaladas das oito horas, no sino da administração, que era o sinal para os comerciantes abrirem as portas das lojas, se gerou um certo burburinho na rua de cima. Era, afinal, também o sinal para começar o ataque ao Quitexe. Uns dias antes tinham fugido uns presos da prisão do posto e na perseguição que se seguiu, houve bastante algazarra, pelo que a minha mãe não deu importância ao barulho que ouviu, pensando tratar-se outra vez de uma fuga da prisão. Foi nesse instante que um elemento que estava na esquina da nossa casa, empunhou uma catana dirigindo-se a ela de arma no ar com a intenção de a matar. Ela começou a fugir em direcção a casa do seu irmão Augusto, aos gritos de socorro.
A minha mãe levou 11 catanadas e o Zézito Guerreiro ficou degolado à entrada da loja
Foi nesse instante que nós ouvimos os gritos da minha mãe e nos apercebemos da gravidade da situação. De imediato o tio Augusto agarrou a espingarda 22 long, ordenou-nos que nos escondêssemos e que só poderíamos sair quando ele nos fosse buscar. Desatou a correr em direcção à irmã que, entretanto, já tinha tombado junto ao cruzamento para a rua da Igreja (esta cena marcante, foi vista por nós, da porta de casa do tio Augusto). Os meus avós que também tinham saído em socorro da minha mãe, tombaram também. A minha avó sucumbiu na varanda da casa dos meus pais e já a vi morta quando acabou o ataque. O meu avô foi ferido com uma catanada na nuca, foi connosco para o Uíge, e veio a falecer 5 dias depois no hospital de Luanda.
Fotografia de Maria Helena Guerra, sendo visível a cicatriz que lhe atravessava o rosto, fruto da catanada que lhe fragilizou o osso do maxilar.
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Algum tempo depois chegou o tio Augusto que nos veio buscar, já com outra arma, uma caçadeira, que ele tinha ido buscar à arrecadação do posto, onde estavam algumas armas apreendidas, pois a 22 long tinha encravado ao primeiro disparo (salvou-se graças a uma pequena pistola 6,35 que andava sempre com ele no bolso das calças).
Em frente da minha casa, estavam o Sr. José Coelho Guerreiro e a esposa (D. Felismina), com a filha bebé a Maria Helena, a minha mãe com 11 catanadas (8 nas costas, 2 nos braços e uma no rosto, tendo o nariz ficado preso pelo lábio superior), a minha irmã e o meu avô que foi colocado num colchão na carroçaria da carrinha do Sr. José Guerreiro. Com o tio Augusto de pé na carroçaria a fazer protecção, seguimos para o Uíge. O filho mais velho do sr. José Guerreiro (José Cebola Guerreiro de sete anos), tinha ficado degolado à entrada da loja dos pais na rua de cima. Na cabine da carrinha de apenas 3 lugares, seguia o Sr. José a conduzir (ferido), a esposa (ferida) e filha, a minha mãe, a minha irmã, as minhas duas primas e eu. A minha mãe segurava o nariz com um roupão turco que ficou ensopado em sangue, bem assim como todos nós, pois das oito pessoas que iam na cabine três estavam feridas.
A viagem até ao Uíge decorreu sem incidentes e ao chegarmos ao Hospital, já lá estava o Dr. Almeida Santos (Dr. Talambanza como era conhecido) à espera, tendo sido a primeira pessoa a socorrer a minha mãe, aplicando-lhe logo uma injecção à entrada do Hospital.
Quando o meu pai chegou ao Quitexe, já se tinha dado o ataque e já nós tínhamos seguido para o Uíge. Como houve mobilização geral, nenhum homem mais foi autorizado a abandonar o Quitexe. Ficou 15 dias sem saber de nós, e nós sem sabermos dele.
De regresso à Fazenda Quimbanze
Na fazenda Quimbanze as mulheres e os miúdos estão reunidos na casa. Entretanto chegam mais uns vizinhos e era a altura de decidirmos o que fazer... Dentro de pouco tempo, vimos que dois carros circulavam no sentido do Quitexe que ficava a uns três quilómetros. Resolvemos avançar, também, e entrar na povoação onde alguns cadáveres estavam ainda na berma das ruas. Tento desviar o olhar dos miúdos da tragédia, mas não o consegui totalmente pois a minha Adrianita, com sete anos não mais esqueceu a visão dos mortos:
“Uma guerra, a guerra via com os meus olhos, começou a andar à volta, entrou dentro de mim: a senhora gorda que tanto tremia, as pessoas mortas nos passeios do Quitexe, nós fechados num quarto do hotel do Uíge e a mãe com uma catana na mão; depois, escondidos num jeep, com armas a protegerem-nos, na ida para o aeroporto. Já em Portugal, durante a noite chorava, não era medo era terror, pânico!
-“Não tenhas medo filha, eles não chegam cá. O mar é tão grande!”
-“Mas há barcos, mãe. Eles podem vir de barco, mãe!”
Aquela madrugada tinha sido trágica no Quitexe, mas também em diversas fazendas em redor. Tempos depois, para recordar os seus mortos, os colonos colocariam na parede da igreja lápides com os nomes dos assassinados, mutilados e esventrados à catanada. Da leitura dos nomes dos que caíram nessa manhã o que mais impressiona são as crianças:
Famílias inteiras destroçadas e, outras, que jamais recuperaram do trauma.
Até 1975 outras placas se seguiram preenchendo a fachada da igreja.
Foto de http://cesarbcav1917.blogs.sapo.pt/
A fachada da igreja foi ficando repleta de placas alusivas aos mortos portugueses no município do Quitexe
Entretanto, no Uíge
António Manuel continua o seu relato:
No Uíge, o tio Augusto levou-nos para uma sala no hospital e deixou-me de guarda às espingardas encostadas a um canto da sala, enquanto ele procurava saber dos feridos. Ao hospital chegavam cada vez mais pessoas, quer feridos, quer pessoas que iam saber de amigos e de notícias.
Uma senhora que morava próximo do hospital, levou a minha irmã e as minhas primas para casa dela, onde puderam trocar de roupa que entretanto lhes arranjaram, pois nós saímos do Quitexe só com a roupa que trazíamos vestida. Próximo do meio-dia, o tio Augusto levou-me a casa dessa senhora, onde troquei de roupa (as nossas estavam todas cheias de sangue) e almoçámos.
Logo a seguir ao almoço, o tio Augusto foi-nos buscar e levou-nos para o aeroporto do Uíge, onde aguardámos a chegada de um avião (Dakota) da DTA, vindo de Luanda para levar os feridos e ao qual foram retirados alguns bancos para receber as macas. Aguardámos a chegada do avião, sozinhos e sem qualquer protecção militar. Quando o avião aterrou, foram embarcados os feridos do Quitexe e lembro-me de ter visto a D. Felismina, Sr. José Guerreiro e filha, a minha mãe, o meu avô, a Geninha e a prima Beatriz, o Tio Augusto, a minha irmã, e as minhas primas. Mais pessoas embarcaram, pois o avião ia cheio, mas não me recordo quem eram.
Ao Quitexe começam a afluir as mulheres e crianças brancas de todas as fazendas. Ninguém sabe se será seguro permanecerem lá sozinhas ou, sequer, como vai evoluir a situação. Na parte da tarde vem uma camioneta do Uíge para evacuar as mulheres e crianças para o hotel do Uíge. Mas consta que esta cidade será atacada por milhares de pretos nessa noite (de 15 para 16). Decido que o meu dever acima de tudo é defender a família e deixo o Quitexe rumo ao Uíge.
No Uíge ficamos instalados no hotel, mas os rumores do ataque da UPA são cada vez mais persistentes. As ruas estão desertas e na rua principal apenas um civil, que deve ser da Pide, patrulha, rua abaixo, rua acima, com uma pistola-metralhadora e cartucheiras cheias de balas. No hotel a confusão e ansiedade pelo que pode acontecer é grande. Não há ninguém para defender o hotel. Um redactor do Jornal do Congo, lá hospedado, apercebe-se do drama e telefona para o quartel da tropa relatando a situação em que se encontravam dezenas e dezenas de mulheres e crianças, totalmente desamparadas e sem protecção. A resposta foi pronta:
- Desenrasquem-se como puderem pois em caso de ataque nem tenho tropa suficiente para defender o paiol!
Eu tinha comigo uma pistola 365 com 10 balas; eu que na minha vida só tinha disparado ao alvo armas de pressão de ar! E se fosse preciso abrir fogo?...
As mulheres, nos quartos do hotel, apenas têm catanas para se defenderem!
A situação era aflitiva pois os homens tinham ficado no Quitexe. Esgotada a possibilidade de defesa, vou à loja do Ferreira Lima buscar uma dezena de catanas que distribuo pelos quartos. Com os poucos homens organiza-se uma defesa simbólica com duas pistolitas e duas catanas. Três pessoas ficam na porta principal. Eu fui para as traseiras defender a porta de acesso às instalações. A noite vai avançando. Atacarão, não atacarão? Agora chega a informação que o ataque vai começar à meia-noite. Cresce a ansiedade. Nada é dito para os quartos, agora fechados, onde as mulheres, em caso de ataque apenas têm as catanas para se defenderem. A meia-noite aproxima-se e então começo a ver e ouvir vultos que se aproximam, subindo a rua das traseiras do hotel.
– MATA! MATA! UPA! UPA!
Do lugar onde estou vejo passar a turba, mas não há nenhum sinal de quererem atacar o hotel. Também já passaram junto ao quartel da Polícia e do Palácio do Governador e só se ouve o – MATA! MATA! UPA! UPA! Não há tiros. Só mais tarde para os lados do Bairro Montanha Pinto começa grande tiroteio que vai diminuindo conforme a noite avança. Corre a notícia de que, afinal, as grandes sanzalas em redor do Uíge não colaboraram no ataque. O grupo que avançou era o que havia passado nas traseiras do hotel e foi disperso.
Ao chegarmos a Luanda, não fomos desembarcados para o terminal do aeroporto como seria normal. Fomos metidos todos em ambulâncias que nos levaram para o hospital Maria Pia, onde ficaram internados os feridos. O tio Augusto, as minhas primas, a minha irmã e eu, podemos juntar-nos ao tio Celestino, que estava em Luanda e tinha seguido as ambulâncias desde o aeroporto e aguardava por nós.
O tio Celestino levou-nos para o hotel Europa, onde ele se encontrava hospedado e fomos mandados subir imediatamente para os quartos, não tendo sido permitido a ninguém falar fosse com quem fosse. À porta do hotel encontravam-se bastantes pessoas, mas só o meu tio Celestino ficou para trás, e creio ter sido nessa altura que ele falou com o autor do livro Sangue no Capim (Horácio Caio), que faz uma alusão muito rápida sobre as pessoas com que o meu tio estaria preocupado (Tio Jaime e família, família Rocha, etc.).
Houve manipulação por parte do poder para encobrir os ataques
Ao tio Augusto, que infelizmente viveu na primeira pessoa o ataque ao Quitexe, e que para mim foi o nosso salvador, não foi permitido que falasse com ninguém (não entendemos porquê). Mais tarde, e à medida que se ia falando mais sobre estes acontecimentos, começámos a perceber uma certa manipulação por parte do poder que tentara encobrir os ataques.
Entretanto, uma senhora amiga, esposa de um caixeiro-viajante, que aparecia pelo Quitexe e por vezes ficava em nossa casa, viu o nome da minha mãe, num jornal diário na lista dos feridos, foi visitá-la ao hospital e mandou um telegrama para o meu pai, dando-lhe conta que a família se encontrava viva em Luanda.
Na primeira oportunidade que o meu pai teve de pedir uma licença ao exército para ir a Luanda ver a família, fê-lo e nunca mais regressou ao Quitexe.
As nossas casas foram entretanto alugadas ao exército, tendo permanecido assim até 1975.
Dia 16
Continuamos, agora, com o relato de João Garcia
Começa a caça ao preto, enquanto vão chegando notícias de mortes por todo o norte de Angola.
Eu, o Ramos e o Armindo concluímos que, dada a impossibilidade de as famílias voltarem para o Quitexe e para as fazendas, o melhor seria requisitar um avião e evacuá-las para Luanda, onde estava tudo calmo. Feitas as diligências junto da DTA o avião só viria ao Uíge se nós nos responsabilizássemos pelo pagamento. Perante uma tragédia desta dimensão era ignóbil que fossem os particulares a assumir as despesas, mas não hesitámos. Eu e o Ramos assumimos a responsabilidade, com a garantia de que o avião chegaria ao Uíge por volta das três da tarde. Não havia sacos nem malas pois as mulheres e crianças embarcavam com a roupa que traziam no corpo.
Já no aeroporto e com o avião na pista os pilotos tomam conhecimento do que se está a passar e ficam muito surpreendidos pois em Luanda não há conhecimento de nada. E prometem que, se houver condições, voltarão antes de anoitecer. Mas as condições atmosféricas não o permitiram.
No dia seguinte o Governo ordena uma ponte aérea e começa a evacuação das mulheres e crianças do norte de Angola. E eu regresso ao Quitexe preocupado com o que se terá passado na fazenda.
No percurso, perto da fazenda do Matos Vaz um casal de nativos, ela com um bebé atado às costas, caminha pela berma da estrada. De uma carrinha alguém dispara e mata o casal. Eu, que vou noutra carrinha, mais atrás, vejo horrorizado o bebé rastejando por cima do corpo da mãe já morta. O motorista não para e ninguém grita... A morte sobrepõe-se à vida!
O Quitexe está cheio de gente que, vinda dos Dembos, das povoações e das fazendas ali procurava abrigo.
A noite de 17 para 18 é passada na casa do Chefe do Posto entretanto transformada na fortificação principal. Um grupo de 9 soldados africanos, 2 cabos e um tenente brancos das forças territoriais vêm em nossa defesa. Os soldados e os civis, deitados no chão, embrulhados num cobertor, esperam, dormindo acordados, que a manhã afaste o medo da noite. Os soldados africanos revezam-se dia e noite agarrados às metralhadoras. Parecem nunca terem sono, disciplinados. São homens do Sul, talvez Cuanhamas, soldados de confiança.
Bilhete do contratado José Zeferino relatando o assalto à fazenda no dia 24 de Março: Atenção no dia 24 de Março de 1961 apareceu com muita gente de Ambuíla com espingardas. Começou a partir as portas. Queria nos levar no povo deles. Nós com pessoal do Sr. Gracia ninguém acedeu na conversa deles. Os gajos mataram as cabras e galinhas do Snr. Gracia, (...) entrou nos quartos a bebida toda que havia lá e chouriço e atum comeram tudo. Fez muito estrago (...) Vosso servo José Zeferino |
O Quitexe, onde nos primeiros dias se juntou muita gente, vai ficando cada vez menos ocupado. Com diversos argumentos, entre os quais irem ver as mulheres e os filhos a Luanda os homens também vão saindo. Mas a vigilância aumenta, temendo-se novo ataque.
A repressão
Após o ataque ao Quitexe as populações das grandes sanzalas permaneceram nelas, pacificamente. Os carros circulavam no seu interior, sem qualquer hostilidade. Há como que uma pausa para avaliar a situação pois creio que, embora todos os negros estejam ao corrente do que se passa, inicialmente, só uma pequena parte terá aderido à UPA e ao ataque ao Quitexe e às fazendas. A UPA só conseguiu alguns êxitos no primeiro dia dada a surpresa, pois se estivessem as fazendas alertadas, tudo tinha sido diferente. As autoridades estavam, afinal, a par do que iria acontecer, dia e hora, como posteriormente se veio a saber. Porque não alertaram as fazendas e as povoações da iminência do ataque? Porque deixaram morrer tantos brancos, mulheres e crianças sem saberem por que estavam a ser esquartejados à catanada?
A UPA, à semelhança do que se passou no Congo Belga, confiou que os brancos, cheios de medo, abandonassem em fuga as suas terras, o que, por pouco não conseguiu. Só, talvez a presença de largos milhares de contratados do Sul, agora todos classificados de Bailundos o terá evitado. Só na área do Posto do Quitexe haverá quatro ou cinco vezes mais Bailundos que toda a população local africana. Por variadas razões estão totalmente ao nosso lado e, assim evitam que a actividade cafeícula paralise.
A repressão que se segue é brutal. Não se procura uma alternativa. Entretanto, eu e o Martins Gonçalves propomos tentar entrar em contacto com as sanzalas, mas a nossa sugestão é liminarmente excluída: não havia ordem para isso.
As sanzalas são metralhadas e incendiadas. Homens, mulheres, velhos e crianças iniciam a debandada; levam consigo os poucos haveres que conseguem reunir. O seu destino é as matas impenetráveis da Serra do Quimbinde, da Serra do Quitoque, do maciço da Serra do Cananga. Vão, quem sabe, à procura dos lugares dos seus antepassados, de onde, um dia, foram obrigados a sair, pela força, para se fixarem junto às estradas que correm no sopé das serras e dão acesso aos Postos Administrativos e, agora, às povoações da população branca e às sanzalas africanas.
A morte de todos os pretos da região, sentenciada pela Pide, braço da repressão do governo, secundada pelos agentes das autoridades administrativas e outros mais sedentos de vingança, conseguiu, em poucos dias destruir o equilíbrio simbólico que existia entre o poder das autoridades portuguesas e o poder africano dos sobas.
O bom relacionamento dos comerciantes com os povos das sanzalas era fruto de uma actividade onde os interesses mútuos se cruzavam. Para o comerciante do mato é do bom relacionamento com os nativos que depende a sua própria sobrevivência e foi este equilíbrio estável que foi irremediavelmente perdido. E, assim, de maneira pouco política e irresponsável, as autoridades portuguesas entregaram à guarda da UPA, os povos com quem convivemos durante centenas de anos. Este convívio nem sempre foi feito da melhor maneira, mas mais por culpa das autoridades que preferiam, em vez do respeito mútuo, incutir em terra alheia a submissão e o medo, esquecendo os valores do humanismo cristão que tanto apregoavam.
Só mais tarde adoptaram a política da “psico”, tentando atrair as populações africanas a aldeamentos -modelo guardados pelos “flechas” e visitados pelos altos governantes, como exemplo da convivência com os povos nativos.
“Ao Povo do Quitoque que está nas mata. Eu Raul Manuel chamo meu pai Manuel, venha apresentar no Quitexe e outra gente quer vir, venha também. Não deixa perder seu tempo. Francisco Domingues chama a mulher Donana Almendo, o Tiago Malungo chama a sua mulher, o soba Simão Domingues chama sua filha Luísa Simão e os seus netos
O comandante deixa vir quem quiser vir apresentar. Todo está apresentado vive bem, a tropa trata bem de nós. Todo que vinha doente foi tratado no hospital, agora está muito bem; olha se não deixar gente para vir apresentado vão entrar patrulha vão fazer 3(?) mez (?) na mata e lagar (?) mandioca Se onde vão esconder
espero
dia 21-11-65
O Soba Simão Domingues”
Carta do Soba do Quitoque pedindo aos familiares para saírem da mata e se apresentarem à tropa portuguesa. Este panfleto era lançado no mato com meios aéreos e fazia parte da "guerra psicológica", lançada mais tarde, para retirar as populações da influência dos movimentos de libertação.
Documento - José Lapa
Em 62 os que regressavam ao Quitexe eram treinados e preparados como um grupo especial da defesa civil
(foto – António Rei)
O homem da Pide, pessoa por sinal asquerosa, era quem mandava no Quitexe. Tinha efectivamente um poder que se sobrepunha a todos os outros, incluindo o militar e era ele que comandava toda a repressão. Assim, resolve um dia, com autorização superior, incendiar a sanzala do Ambuíla que confrontava com a minha fazenda.
Fiquei preocupadíssimo, pois a roça limitava com a sanzala e com todas as lavras de café, mandioca e feijão que eram a base de toda a sobrevivência daqueles povos. Quando fui autorizado a demarcar a fazenda tive o cuidado de falar com o velho Cussecala, deixando livre a mata entre a fazenda e as lavras e sempre mantive relações de cordialidade com os nativos da Sanzala.
Sigo para lá e constato que são os meus contratados que, à ordem da Pide, estão a colaborar no ataque.
Quando entro na sanzala os contratados vêm carregados de cobertores, panelas, bicicletas e tudo o mais que podem carregar. Entretanto o fogo vai consumindo as cubatas, restando apenas paus fumegantes.
Quando parece acabada a operação eis que surge uma figura envolvida em panos, de carapinha toda branca, um velho (macolundo) descendo do ponto mais alto da sanzala. Era o velho Cussecala, pai do Pedro, meu antigo ajudante nas carrinhas, que enlouqueceu, depois de ter sido soba.
Nesse fim do dia, ele descia livre, pela última vez a avenida da sua velha sanzala. Ainda grito para um soldado:
- Não o matem! Não o matem! Ele é um doido que há muito enlouqueceu!
Do cano da espingarda uma bala parte direitinha ao crânio do Velho Cussecala que cai com a cabeça despedaçada.
Agora é o regresso dos heróis e eu vou para a fazenda onde começam a chegar os contratados com os despojos do saque. Ordeno, então, para que todos os haveres que tinham sido roubados na sanzala sejam transportados para fora da fazenda pois não permito que nada roubado aqui permaneça. Têm o prazo até amanhã de manhã para o fazerem.
Parti com a sensação de que, no dia seguinte, só encontraria destroços fumegantes das casas, dos armazéns, dos acampamentos, dos tractores, enfim de tudo o que representa uma vida de trabalho e sofrimento.
A morte é a sina para todos os negros que não sejam bailundos
Vivendo ainda o sucedido no dia anterior, vou para a fazenda saber a reacção dos contratados Bailundos aos acontecimentos. Sou informado de que está tudo calmo e que a minha ordem, para que todos os utensílios roubados no Ambuíla fossem postos fora da fazenda foi cumprida. O Augusto segredou-me que eles tinham reunido todos os bens roubados e os tinham ido pôr junto à minha casa; de noite alguém os havia levado.
Não fiz mais perguntas, mas calculo que os seus donos os vieram reaver, levando-os para as matas, onde agora se escondiam.
O Augusto e o Quintas
Recordar o Augusto e o Quintas é, para mim, um acto doloroso. Eram dois empregados da fazenda que não eram Bailundos. Trabalhadores exemplares de quem eu gostava muito. Depois do 15 de Março tomo consciência do perigo que eles correm. Eu não vou permitir que os brancos os matem, pois é a sina que está reservada para todos os negros que não sejam bailundos. Como sabia que eles nada tinham a ver com o que se estava a passar, chamei-os e fiz-lhes ver a situação. Pelos tempos mais próximos eu dava-lhes guarida na fazenda, comida e dormida, mas não podiam aparecer a qualquer branco. Certo dia, em que eu tinha ido ao Uíge, houve alguém, que sabendo do seu paradeiro e, aproveitando a minha ausência, resolveu ir buscá-los. Essa pessoa, manda-os chamar dizendo que eu precisava deles no Quitexe. Os dois dirigem-se para a carrinha. O Quintas sobe mas o Augusto diz que tem que voltar ao acampamento buscar um cobertor. Vai a correr para demorar pouco. No momento em que o tinham mandado subir lembrou-se das minhas palavras e já não voltou. O pobre do Quintas é entregue à Pide que o faz desaparecer.
O Augusto viveu sempre na fazenda e, em 1973 quando regresso ao Quitexe, passados 12 anos, lá o vou encontrar já casado e com três filhos.
À procura da cidadania
Neste tempo de certezas absolutas ninguém queria encarar a raiz do conflito. No entanto era notório que algo novo estava na forja e que excluía a comunidade branca. Os indígenas, que tantos anos esperaram pelo direito à cidadania na sua própria terra, impedidos de serem cidadãos portugueses, fartos das prepotências das autoridades administrativas, da palmatória e do chicote foram terreno fértil para a sementeira de ódios recalcados.
João Garcia recua no tempo e relata-nos alguns acontecimentos do quotidiano que ajudam a compreender a raiva e o descontentamento acumulados que, bem explorados pela UPA, explodiram numa onda cega de ódio e sangue.
Por volta dos anos 55/56 o preço do café atinge preços elevados; a economia floresce e os indígenas, ao vender o seu café nas povoações comerciais regressam a casa com bens de consumo que nunca pensaram adquirir. Os quimonos e as tangas dão lugar aos vestidos, os panos que envolvem os mais velhos são, em parte, substituídos por calções. Até a língua portuguesa começa a sobrepor-se ao Quimbundo; já não há miúdo nenhum que não fale a nossa língua, ou porque nas missões o seu ensino é agora mais intenso, ou porque o relacionamento com os comerciantes é cada vez mais forte. Alguns indígenas, já produtores de grandes quantidades de café, começam a manifestar o desejo de adquirir o direito à cidadania portuguesa e fugir ao estatuto do indigenato que era, ainda, uma reminiscência da velha escravatura.
A aquisição da cidadania era formalizada com a posse do Alvará de Assimilação. Enquanto os brancos, para obterem o Bilhete de Identidade, apenas precisavam duma certidão de nascimento, duas fotografias e uns dias de espera, para os negros era um nunca mais acabar de exigências:
- Tinham que ser católicos (quando nesta região os povos eram quase todos protestantes);
- Só podiam ter uma mulher;
- Deviam possuir uma casa com cobertura de zinco ou alumínio.
- Tinham que falar português.
Eram as condições que as autoridades administrativas do Quitexe impunham e que podiam ser certificadas por comerciantes. Ainda certifiquei uma meia dúzia de casos, pelo conhecimento pessoal que tinha das pessoas, pois, tirando a questão religiosa, tudo o resto era verdadeiro.
Mas, como no passado, desde o reino à república, as leis são aprovadas em Lisboa, mas os governos coloniais das províncias não só não as cumprem como não as mandam cumprir, perpetuando uma escravatura, onde os direitos são só aqueles que cada autoridade administrativa, segundo a sua bondade, permite. O abuso é tal que qualquer branco se julga no direito de fazer justiça por conta própria.
Nenhum filho da puta de preto queira ser português como eu!
Vem tudo isto a propósito do Alvará de Assimilação. Certificada a pretensão era entregue na Administração ou no Posto Administrativo; Em qualquer dos dois lados o destino era o mesmo – o cesto dos papeis. Fartos de esperar acabam por desistir, pois a resposta era sempre a mesma:
- Ainda não há nada!
Alguns, entretanto, vão tentar a sorte a Luanda e, possivelmente a troco de uns angolares, lá arranjam o tão desejado alvará. Quando voltam às suas terras, orgulhosos porque finalmente são homens com direitos, vão, como tal, apresentarem-se se às autoridades exibindo o símbolo do sonho agora realizado. O Chefe do Posto analisa o alvará e vê que foi tirado em Luanda. Sendo ele natural deste posto não podia ser emitido sem prévia informação da autoridade local. O Chefe do Posto chama o cipaio e manda dar uma carga de porrada e vinte palmatoadas em cada mão, dizendo:
- Aqui quem manda sou eu e, enquanto for autoridade, nenhum filho da puta de preto queira ser português como eu!
O Velho Canzenza
O velho Canzenza simbolizava a alma da velha cultura e do poder africano, exercido em paralelo com o da administração portuguesa. A solução dos grandes problemas surgidos no seio das comunidades e no interior das sanzalas estava a cargo de Os Mais Velhos que eram pessoas de muito respeito, não só por serem velhos, mas pelo saber e experiência que tinham da vida africana. São, os mais velhos, homens como o Canzenza, perante os quais os mais novos se curvam e batem palmas em sinal de muito respeito. Foi na pequena sanzala, logo à saída do Quitexe, na estrada que vai para Camabatela, que o velho Canzenza foi obrigado a fixar-se desde 1947/48 vindo de longe, da serra do Cananga. Lá vivia rodeado de uma numerosa família e era possuidor de grandes lavras de café.
A ordem do Muniputo (Administração Portuguesa) viera. Tinha que abandonar a sua serra e fixar-se junto à estrada, perto do Posto Administrativo do Quitexe, a uns 40 ou 50 Km.
A partir de 1949 o café começa a subir nas cotações internacionais, o seu preço aumenta. Em Luanda há uma corrida em direcção ao Norte. Todos querem ser fazendeiros: médicos, engenheiros, advogados, comerciantes, juízes, reformados do exército e também muitos aventureiros; vêm todos à procura do ouro negro.
As matas do Quitexe são as mais apetecidas e, assim, munidos de licenças de demarcação de milhares de hectares, vão espalhando tabuletas a assinalar a posse e ocupação dessas extensas áreas. O Quitexe está transformado num verdadeiro “Farwije”.
Estamos no ano de 1951. O velho Canzenza é chamado ao posto onde o Chefe lhe diz que as suas antigas lavras de café na serra do Cananga e as matas em redor foram demarcadas por um senhor médico, reformado do exército. O Chefe do Posto intimou o Velho Canzenza para, no outro dia, lhes ir mostrar todas as lavras lá existentes. Ele, que três anos antes fora obrigado a abandoná-las, regressa, agora, para as entregar ao branco vindo de Luanda. Podia ser que o branco, em troca, lhe desse uma boa retribuição...
Há uma corrida em direcção ao Norte. Todos querem ser fazendeiros
Mas o oficial médico, vestindo a sua farda militar, arroga-se em representante do estado português e, portanto nada tinha a pagar.
E, assim regressaram ao Quitexe, o Velho mais pobre e o branco, mais rico, talvez já colha, nesse ano, umas toneladas de café nas lavras abandonadas.
No dia 15 de Março o Canzenza ficara na sua sanzala que ficava a menos de 1 Km do Quitexe. Por certo saberia o que se tinha passado nessa manhã. Ao cair da noite, uma carrinha vinda dos lados de Camabatela aproxima-se da sanzala. O velho lá está vestido com os tradicionais panos. Da carrinha são disparados tiros e o Canzenza cai ao chão. A viatura não para, segue para o Quitexe e o R...... anuncia que acabava de matar o Canzenza. No dia 18 de Março o Quitexe está em pé de guerra, cheio de gente. Por altura do meio-dia é dado o sinal de alerta, todos correm a pegar em armas. Um preto, possivelmente um “turra” aparece de mãos no ar dirigindo-se para o Posto Administrativo. Aproxima-se e passa entre alguns brancos de armas apontadas. Vou ver de quem se trata e, meu Deus, que vejo eu! A figura imponente do velho Canzenza. Tal como Jesus Cristo, que ao terceiro dia ressuscitou, também o velho Canzenza faz de novo a sua aparição no reino dos vivos. Afastei-me cobardemente, para que ele não me visse. Eu não estava em condições de lhe poder valer, pois, dias antes, eu também havia sido ameaçado de morte pelos brancos. Horas mais tarde, soube que havia sido entregue à Pide e tinha sido levado para o Uíge para interrogatório. Pobre Canzenza, por certo nunca mais voltaria e as autoridades portuguesas teriam perdido um dos elos mais fortes do convívio pacífico entre os Portugueses e os Africanos: apesar de tudo, Os Mais Velhos gostavam dos Portugueses!
O segundo ataque ao Quitexe
Em 10 de Abril organiza-se uma grande coluna com todos os brancos que ainda resistem, tropas e Bailundos das diversas fazendas para ir ocupar Aldeia Viçosa. Mas a povoação estava completamente destruída e é feito o regresso ainda nesse dia. A deslocação a Aldeia Viçosa deixou-me muito cansado e, como tudo parece calmo, vou dormir a minha casa, no meu colchão. De noite, pouco antes de amanhecer, acordo com um falatório em surdina entre os Bailundos que estavam a dormir nas varandas da casa. Levanto-me, calço os sapatos e em cuecas venho à porta saber o que se está a passar.
Mal abro a porta, rompe um tiroteio infernal. Vou buscar a espingarda e o saco bordado da ilha da Madeira, onde trago as 100 balas que me haviam sido distribuídas e vou para o Bar do Pacheco, mesmo em frente, onde todos os dias dormíamos. Mas eles, logo que começou o tiroteio, fecharam as portas. Entretanto os Bailundos vão-se juntando à minha volta; eles e eu, estamos agora em campo aberto. Olho da esquina do Bar do Pacheco para as ruas em frente e só vejo pretos com uma fita branca à roda da cabeça. É o distintivo dos “upas” para não se confundirem com os Bailundos. Tudo quanto é arma faz fogo cerrado desde as metralhadoras pesadas, às mausers e caçadeiras e eu, ali em cuecas, no meio da rua, sem saber o que fazer. Resolvo arriscar e começo a subir em direcção ao Posto, com todos os Bailundos atrás de mim. É uma decisão arriscada, para mim e para os contratados, pois há o risco dos defensores da casa do Posto confundirem os Bailundos com os terroristas e, então, ocorrer uma chacina de consequências imprevisíveis, pois nenhum dos comandantes se lembrou da protecção a estes homens em caso de ataque.
Tudo quanto é arma faz fogo cerrado e eu ali, em cuecas, no meio da rua sem saber o que fazer.
As balas assobiam por todo o lado, um bailundo, perto de mim, leva uma catanada na cabeça. No lusco-fusco ainda há muitas sombras, mas o ataque é forte. Eu, na vida, nunca tinha tido medo, mas naquela altura, e, por segundos, as pernas tremeram-me; felizmente reagi e não caí. Continuo a subir a rampa trazendo, atrás de mim os contratados. Já a uns 50 metros da casa do Chefe do Posto, onde estava concentrado o maior poder de fogo da nossa defesa, mas felizmente, agora, virado para o lado oposto de onde eu vinha, alguém grita:
- Não façam fogo! Vem ali o Garcia! Não façam fogo!
E assim conseguimos chegar ao Posto, eu e os Bailundos, que foram colocados à volta da casa. Mas dois “turras” haviam-se misturado com os contratados que, prontamente, os denunciaram. Foram de imediato executados. Entrei para dentro do Posto e fui colocado numa janela para proteger o motor e o gerador da electricidade. De arma carregada fiquei vigilante. De repente um estrondo enorme faz tremer a casa. Digo para mim:
- Estamos perdidos, já cá estão dentro.
A coisa é grave, vou ver o que se está a passar e vejo, no canto da sala ao lado, um soldado morto, completamente despedaçado. Aconteceu, que o soldado, prevendo o aproximar dos atacantes, agarra numa granada de mão, tira a cavilha e, quando se prepara para a arremessar é atingido por um tiro na barriga. Recua para a sala, sempre com o manípulo premido, com a mão fechada. Já no canto da sala começa a desfalecer, abre a mão e deixa cair a granada que rebenta estrondosamente, estilhaçando tudo à volta.
Agora, que as armas se calaram e o dia começa a despontar há que tratar dos feridos e contar os mortos. Dos feridos, o caso mais grave é o cabo Alfredo, que foi atingido e tem uma bala alojada um pouco acima do coração, junto ao ombro. O Dr. Assoreira e o enfermeiro Alves conseguiram estancar a hemorragia. Há mais três ou quatro feridos mas sem gravidade. Mortos, temos o soldado esfacelado pela granada e uma família, pai (Bessa), mãe (negra) e dois filhos, que viviam em casa do Laurindo Ribeiro, mesmo à entrada da povoação e, por isso mesmo, foram as primeiras vítimas do ataque, barba-ramente assassinados.
Os mortos visíveis da UPA são poucos, uns seis ou sete à roda do posto. É uma surpresa, terão eles carregado os mortos? Como é possível, com tantos tiros e avançando eles a descoberto?
Ora, dentro da povoação, a única saída que tinham, dado o fogo intenso a que estavam expostos, era refugiarem-se no capinzal, que do lado poente tinha uma altura que os escondia completamente.
As autoridades dão ordens para que os contratados das fazendas capinem toda aquela área do lado poente. E, então, as suspeitas confirmam-se: à medida que o terreno vai ficando limpo começam a aparecer os cadáveres crivados de balas. Na fuga os “upas” tinham que atravessar um terreno inclinado, onde eram apanhados pelas balas das metralhadoras, não lhes valendo de nada o facto de estarem escondidos no capim.
Ouvi dizer que os alinharam no chão, à medida que iam aparecendo, mas eu não fui ver. O espectáculo da morte nunca me atraiu. Para mim representa sempre uma tragédia macabra, mesmo quando feita em legítima defesa. Infelizmente, neste mundo cristão, o mandamento – Não matarás, não é escutado, prevalecendo sempre o grito odiondo de – Viva a morte! De um lado porque é preto, do outro porque é branco
O Adeus ao Quitexe
Corre o mês de Abril de 61 no Quitexe. O tractor, que eu havia emprestado para os trabalhos de abertura da pista para as avionetas, continua ao serviço da Administração. Mas, entretanto, alguém me vem informar que o pretendem utilizar na abertura de valas para enterrarem os pretos que vão sendo mortos na repressão cega, desenfreada e absurda da revolta. Faço-me ouvir:
- Quem os mata que lhes abra a cova! Com o meu tractor, não!
Retiro a máquina e guardo a chave. Ninguém se atreveu a questionar-me.
A vida humana tem apenas o valor do custo de uma bala, 7$50
Os corpos dos negros são atirados da ponte ao rio Luquixe. Às vezes ainda moribundos, agarram-se aos ramos das árvores que bordejam o rio e assim se vão esvaindo até que a morte e a corrente os transportem rio abaixo.
A indisciplina, que entretanto reina entre os brancos, causa alguma apreensão às autoridades.
Neste ambiente, sem calor humano, os sentimentos são confusos. Não há mulheres, nem o sorriso ou o choro de uma criança. À noite matilhas de cães famintos, abandonados pelos seus donos cercam o Quitexe, uivando sem parar, pressagiando a desgraça e a morte. Os nervos sempre à flor da pele, o vinho, a cerveja e os instintos mais primários de cada um vão tomando conta do dia-a-dia do Quitexe. A vida humana, para alguns, tem apenas o valor do custo de uma bala, 7$50. Triste imagem de gente “civilizada”. Estes são, afinal, os valores morais emergentes da filosofia da guerra que só viriam a ser contrariados por oficiais militares que reconheceram o mérito e a bondade das minhas atitudes nesta guerra diabólica.
Também se acabaram as cucas (cervejas), o vinho e até os cigarros escasseiam. As pessoas começam a reagir pelo desprezo a que estão a ser votadas pelas autoridades, que nada fazem para abastecer o Quitexe. Só os de Mucaba são heróis. Aproxima-se o mês de Julho e eu começo a pensar seriamente em vir a Portugal. Entretanto, a chegada de uma companhia de soldados, para se fixar no Quitexe, já tem data anunciada. O meu irmão Alfredo, que já regressou de Luanda, vai tentar, com o Alcindo, fazer a colheita do café. As circunstâncias são difíceis, pois os contratados do sul são poucos e também ficaram afectados por quatro meses de terríveis sobressaltos.
Com a anunciada vinda da tropa muitos comerciantes regressam na esperança de que a actividade possa ser retomada. Mas, ao contrário dos agricultores, que, se tiverem um pouco de segurança, podem fazer a colheita, os comerciantes não têm a quem vender e a quem comprar, pois só com o regresso dos nativos das matas aos lugares das antigas sanzalas isso seria possível. Hoje sabemos que isso só veio a acontecer 14 anos depois, quando já nada podia voltar a ser como era dantes. Entretanto alguns, poucos, abriram as lojas e começaram, com restaurantes e bares, a fazer negócio com os militares e, mais tarde com os voluntários.
Nos primeiros dias de Julho vou a Camabatela. No caminho encontro muitos camiões carregados de tropa, atolados num mar de lama. Era a companhia que seguia para o Quitexe.
Chegado ao Quitexe, anuncio que, finalmente, as tropas já estão às portas de Camabatela e que dentro de três ou quatro dias chegarão à povoação.
No dia 4 de Julho combino com o Armindo Lenita a ida para Luanda, pois ele também vai a Portugal ver a família. Combinamos fazer a viagem de carrinha, via Lucala onde dormimos. No dia 5 vou ter com o Alferes Santiago, uma jóia de pessoa, pedir autorização para ir a Luanda e a Portugal.
- Vá, vá, Garcia. Vá ver a família e trate da saúde que deve estar abalada.
Desejei-lhe felicidades e, com um aperto de mão, despedi-me do nono comandante do Posto Militar do Quitexe, quantos os que foram rendidos durante a minha permanência de 4 meses na guerra.
Do Quitexe levei comigo a imagem de um sepulcro, onde só regressaria se um dia voltasse a haver paz.
João Nogueira Garcia rumou a Angola, em 1947, com uma carta de chamada do seu irmão Alfredo que se instalara em Porto Alexandre uns anos antes. Natural da Várzea Grande (Vila Nova do Ceira) chegou a Angola com 21 anos, com uma mala cheia de esperança. Rapidamente a sua experiência no comércio lhe permitiu construir a sua própria casa comercial no posto administrativo do Quitexe, na zona do Uíge, a terceira a ser edificada no local.
O bom relacionamento e o respeito que nutria pelos povos desta região angolana foram fundamentais na expansão das suas actividades.
Já em colaboração com o seu irmão Alfredo foi também agricultor de café e industrial. No Quitexe, que rapidamente cresceu e se tornou vila, nasceram os seus filhos. Envolvido na barbárie que toldou os espíritos de angolanos e portugueses em Março de 61, soube afirmar o seu carácter no respeito pela dignidade humana, contra a violência, a vingança e o terror. Veio a falecer em2006, com 79 anos, deixando-nos o relato desses dias negros no repositório de memórias que é o livro “Quitexe 61– Uma Tragédia Anunciada”.
1948 – A casa de João Garcia em construção |
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António Manuel Pereira Guerra, nasceu no Quitexe em Junho de 1950, sendo o primeiro filho de europeus a nascer naquela povoação. Filho de Abílio Augusto Guerra e Maria Helena Borges Pereira Guerra. Os seus pais oriundos de Trás-os-Montes tinham chegado a Angola, depois de uma breve passagem pela Guiné. Estabeleceram-se no Quitexe em 1949. Depois de estar à frente da casa comercial do seu cunhado Celestino, o seu pai construiu a sua própria casa e demarcou uma fazenda para os lados do Zalala.
- “Eu tive o privilégio de nascer em Angola e crescer livre (qual bicho do mato) pelas terras do Quitexe e viver a odisseia da época das chuvas e das viagens a Luanda sem estradas asfaltadas”.
Tinha 10 anos quando assistiu, incrédulo, à morte dos avós e à tentativa de assassínio da sua mãe, acontecimentos que o marcaram profundamente.
Veio para Portugal em 1975 tendo falecido, prematuramente, o ano passado, com 60 anos. Partilhou, no entanto, connosco as memórias da sua vivência de menino no Quitexe. Assumiu a descrição da tragédia do 15 de Março com o distanciamento que só um espírito livre consegue, sem ódios, sem rancores ou ideias de vingança recalcada. O horror visto pela criança de 10 anos, com os mesmos olhos, com a mesma simplicidade e incredulidade.
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