Domingo, 31 de Janeiro de 2010
Do social…
Para os que lêem sem terem vivido os anos 50 ou 60 em África, vou tentar compilar o modo como vivíamos os tempos livres (hoje impensáveis sem televisão, Net ou telemóvel).
Depois de um árduo e transpirado dia de trabalho, o repouso dos guerreiros fazia-se em casa com a família. Depois de jantar, geralmente à varanda ou nas salas, ouvia-se a rádio, ligado a pilhas ou baterias de automóvel, pois electricidade era coisa que ainda não havia (até 1959 ou 1960). Aguardavam-se as notícias, quase secretamente, da rádio Brazaville, por não estarem conotadas com a ideologia política reinante em Portugal, logo mais próximas da realidade e de âmbito mais alargado.
O cinema era aguardado com expectativa, como forma privilegiada de lazer. Até o Quitexe dispor de um gerador a diesel, o senhor que vinha do Uige para projectar o filme, trazia um pequeno gerador. O interessante é que a energia eléctrica só funcionava até às 11h da noite. No dia de cinema, não havia tempo para comentários sobre o filme. As pessoas saíam do armazém da administração praticamente a correr, para chegar a casa e rapidamente se aprontarem para se deitarem. Ao fim do 3º sinal de intermitência da luz, esta apagava-se até à tardinha do dia seguinte.
Os fins-de-semana eram os momentos sociais por excelência. Ou se ia para a fazenda, mas raramente uma família sozinha. Os grupos faziam-se por afinidade e os piqueniques eram formas de convívio muito habituais. A ideia de piquenique envolvia um almoço que na minha família era geralmente de bacalhau e batatas, acompanhados com as couves tronchudas que se cultivavam nas margens do ribeiro da fazenda do meu pai. Eram as raízes a falar mais alto! Também era frequente visitarmos outros fazendeiros. Recordo de um desses dias na fazenda da Minervina. O lanche era borrachinhos fritos com gindungo,q.b., de tal modo q.b. que os meus lábios ficaram inchados com tanto gindungo. O tratamento foi besuntarem-me a boca de manteiga. Era a integração a falar alto também.
Quando não se saía da vila ao fim-de-semana, o entretimento era, por vezes o Sansão – um bode pestilento e enorme do rebanho dos meus pais. Os homens serraram-lhe as pontas dos cornos e passaram a toureá-lo na rua de baixo. Diz-se que os primeiros militares que foram para o Quitexe comeram o Sansão. Era preciso estar com muita fome, penso eu.
O futebol (não fôssemos nós latinos) era outra forma de passar o tempo. Não me recordo muito bem do modo como decorriam os jogos, de quem jogava, mas recordo-me de um jogo de solteiros contra casados que teve um final agitado.
A vida era simples, mas nada monótona. Havia um sentido de comunidade em que se confiava e esta paz na maneira de viver fez de nós pessoas generosas e tolerantes, sem sermos “santos”. O Sol e o calor ajudavam a ter a porta sempre aberta e por ela entravam todos os que desejassem, mesmo sem as formalidades dos convites a que hoje estamos habituados.
Era normal qualquer casa dispor de um quarto, designado de “quarto de hóspedes”, sempre pronto para receber o amigo, o conhecido ou mesmo o viajante que por lá parasse.
Éramos realmente uma família alargada que conseguiu transmitir aos mais novos esse sentimento, ainda hoje vivo nos reencontros de angolanos, até daqueles que nunca conhecemos.
António Guerra
Esta é uma cópia do Boletim Oficial de Angola, publicado em 26 de Julho, recolhida pelo João Cabral e que terá sido o início da iluminação pública no Quitexe.
Diz-nos João Cabral:
"O que aconteceu no Quitexe, como refere o António Guerra, não foi muito diferente do que aconteceu, pela mesma época, no Bolongongo.
Até à chegada dos geradores públicos, as trevas só eram quebradas por velas, candeeiros a petróleo ou então pelos muito sofisticados Petromax. A partir de então, o gerador ligava-se à hora do crepúsculo e permanecia assim até às onze horas, iluminando as duas ou três ruas da localidade e fornecendo também iluminação às casas particulares. Então, piscava uma vez, piscava segunda vez... e à terceira era de vez, até ao anoitecer do dia seguinte em que tudo recomeçava.
Poucos anos mais tarde, o gerador passou a funcionar também duas ou três horas logo pela manhã, para que as senhoras - ou os seus criados - pudessem utilizar os novíssimos ferros eléctricos, substitutos dos de brasas, para passar a roupa.
Quanto aos restantes electrodomésticos... manteve-se o antigamente: fogão a lenha, frigorífico a petróleo e rádios a pilhas ou baterias".
Domingo, 24 de Janeiro de 2010
Por informação do Jornal de Angola ficamos a saber que o vice-governador provincial do Uíge para a organização e serviços técnicos, Pedro Vilhena, visitou, no Quitexe, as obras de reabilitação da administração municipal e das casas dos administradores municipal e adjunto.
Sede da Administração em 1961 - Foto Arlindo de Sousa
Sede da Administração em 2004 - Foto de Ivo Bije
Congratulamo-nos com esta notícia pois, desde o ataque da UNITA, em 1991, que a administração do Quitexe estava privada de uma sede condigna, restando, apenas um edifício esventrado e em ruínas.
O vice-governador visitou, também, a área onde vai ser construído o posto policial e as reservas fundiárias do município, numa extensão de cem hectares, enquadrado no programa do Governo de construção de um milhão casas em todo o país.
Papas de linhaça
Lembro-me de uns capins muito altos (como todos os capins em Angola) que quando arrancados e aquecidos ao fogo, se batidos com força no chão estouravam como foguetes.
Muitas vezes apanhava esses capins com os criados e à noite, à fogueira, era uma festa de foguetes que só visto.
Ora um certo dia andava eu mais um criado pelo capinzal que havia por trás da casa do tio Celestino, quando eu resolvo agarrar um capim desses para levar. Só que em vez de o agarrar por baixo, agarrei-o pelas folhas e puxei. Foi golpe certo na mão. Como havia uma certa cumplicidade entre mim e o criado que sempre me acompanhava, pedi-lhe para não dizer nada aos meus pais.
Os meus pais só deram conta quando eu já não conseguia fechar a mão, tal era a gravidade da infecção. De imediato foi chamado o Dr. Almeida Santos (Dr. Talambanza, como era conhecido) que resolveu lancetar-me a mão para drenar. Quando me apercebi das intenções dele, resolvi tentar uma fuga estratégica, que não foi bem sucedida (já me conheciam as manhas). Fui agarrado e levado junto do doutor para me tratar. Como não conseguia fugir, esperneei, gritei, mas não tive grande sorte.
Tentei outro estratagema. Resolvi demonstrar todos os meus profundos conhecimentos de português vernáculo. A minha mãe estava boquiaberta, pois não sabia que eu era tão erudito. O doutor estava espantadíssimo pois não sabia que uma coisa tão pequena tivesse tão profundo vocabulário. Acabado o relatório em português, seguiu-se uma demonstração do que já tinha aprendido em Kimbundo.
Não me deram tréguas. Fui amarrado a uma cadeira com as mãos atrás das costas da cadeira, fui lancetado e espetaram-me umas papas de linhaça quentes na mão. Talvez para me compensar de tal grau de conhecimentos, o Dr. Talambanza repetiu o tratamento uma série de dias seguidos. Ou será que ele queria aprender qualquer coisa comigo?!
Foi bastante doloroso, mas o Dr. fez um serviço espectacular. Não tenho nenhuma cicatriz na mão, só na recordação!
António Guerra
Terça-feira, 19 de Janeiro de 2010
Acidente no poço roto
O meu pai andava a fazer a 2ª casa no Quitexe, (teria eu 8 anos, talvez 1958), que ficava de gaveto entre a rua de baixo e a rua que seguia para a igreja e, como é natural, andavam sempre por lá alguns trabalhadores nos seus afazeres. 2004 - A casa em ruínas
Nas traseiras da casa estava a ser construída uma fossa séptica, com poço absorvente para onde seriam canalizados os esgotos da casa. O tal poço absorvente ou poço roto como lhe chamavam, não era mais do que um buraco circular e profundo, com as paredes revestidas de pedra irregular e com fendas entre elas de forma a permitirem a infiltração dos líquidos.
Numa bela tarde, andava eu de bicicleta a brincar na obra, quando ao passar pela parte de trás da casa, um dos trabalhadores, também com vontade de brincar, abriu as pernas entre a parede posterior da casa e o poço (que na altura estava vazio para sorte minha), deixando apenas livre para eu passar uns escassos 40 ou 50 centímetros entre a borda do poço e o pé dele.
Claro que eu insisti em passar e passei! A roda da frente passou bem mas a de trás resvalou numa pedra e lá fui eu para o fundo do poço. Só não levei com a bicicleta em cima, porque o tal trabalhador ao ver-me cair, lhe deitou a mão e conseguiu agarrar a roda da frente.
À medida que eu ia caindo para o fundo do poço, o meu traseiro ia raspando pelas pedras que revestiam as paredes. O senhor foi logo buscar uma escada e tirou-me de lá.
Quando a minha mãe me viu chegar à loja muito sorrateiro e com as mãos atrás das costas, disse logo: “Já a pregaste”.
Depois foi a humilhação de tirar os calções rasgados, as cuecas rasgadas e deitado em cima do balcão, sujeitar-me ao tratamento de desinfecção com álcool (como se dizia na altura, o que arde cura) de um traseiro bastante arranhado.
O meu castigo foi ficar uns tempos sem a bicicleta que foi pendurada numa trave do armazém da loja. Será que fui eu o castigado ou foi a bicicleta? E quem merecia o castigo?
Continuo a pensar que todos os azares que me iam acontecendo infância fora, eram fruto de muita injustiça…
António Guerra
Quarta-feira, 13 de Janeiro de 2010
Daniel, o profeta
Os “Kotas”, mais para a minha idade, certamente que se lembram que antigamente, fazíamos uma espécie de provas na 3ª classe. Estas provas eram feitas na escola do Quitexe, por uma equipe de dois professores que vinham de fora e a nossa professora (D. Lucília Barreiros) que apoiava. No ano seguinte, tínhamos o exame da 4ª classe e os exames de admissão ao liceu e às escolas (Industrial e Comercial). Era já uma grande aventura!
Por volta de 1959, 1960 os exames da 4ª classe eram feitos no Uige. Acontece que por alturas da tal prova da 3ª classe, aguardávamos nós ansiosos e nervosos, mais nervosos que ansiosos, comentando entre nós no coberto da escola: “… e se eu reprovo? … será que eu passo?... e o exame será difícil?....
A inquietação era grande e própria da idade. No meio de tanto “aperto”, um dos nossos colegas, o Daniel da família Manda Fama, ergueu os braços, como se ameaçado por uma arma “ mãos ao ar”, e disse no ar mais solene que se possa imaginar: “Calma irmãos… que vamos passar todos”.
Devo esclarecer que nessa altura vivíamos uma religiosidade profunda, frequentando a catequese e demais actividades da Igreja como seja a Cruzada Eucarística. Como disse, o Daniel era da família Manda Fama a que pertencia também a menina Efigénia, a nossa catequista.
Chegaram os tais examinadores (um professor e uma professora), fizemos as provas e não é que passámos todos para a 4ª classe?! Dado o momento solene que tínhamos vivido, o nosso amigo ganhou, entre a miudagem, a alcunha de Daniel o Profeta.
Foto das comunhões no Quitexe.O 2º rapaz da fila da frente do lado esquerdo, é o Acácio Barreiros, segurando a bandeira da Cruzada Eucarística e aquelas faixas que os dois rapazes do lado esquerdo ostentam, não são dos cavaleiros Templários, mas da Cruzada Eucarística.A menina Efigénia está ao fundo atrás do Acácio.
Afinal éramos todos bons meninos.
Foto cedida por Maria Manuela Jardim Baptista
A escola do Quitexe.
Foi no alpendre que o Daniel, o profeta, ditou a sentença:
“Calma irmãos … que vamos passar todos."
E passámos…..
António Guerra
Terça-feira, 12 de Janeiro de 2010
António Guerra continua a brindar-nos com as suas histórias de uma infância feliz passada no Quitexe:
À PESCA… sem cana
Das minhas lembranças mais longínquas do Quitexe, recordo-me da época em que havia meia dúzia de casas e da união entre as pessoas. Éramos uma espécie de família alargada, com temperamentos diferentes, mas de uma solidariedade e interacção que só quem passou por Angola pode entender.
Ao fim de semana, duas ou três famílias juntavam-se e rumavam à margem de um rio para o costumeiro pic-nic.
pic-nic na zona do Quitexe Foto João Nogueira Garcia
Do menu pic-nic, fazia sempre parte a pescaria no rio. À falta das engenhosas canas de pesca, outro engenho surgiu - as bombas feitas pelo sr. Silva Fogueteiro .
O almoço era feito no local e mais para o meio da tarde os homens lançavam uma ou duas bombas para o rio. As mulheres e crianças dirigiam-se para um ponto a jusante onde houvesse pé e com grandes cestos da apanha do café, era só deixar entrar os peixes que vinham a boiar na corrente. O peixe era então distribuído por todos.
Pescaria no Rio Luquixe - Foto João Nogueira Garcia
Só mais tarde começou a aparecer pelo Quitexe um senhor numa carrinha de caixa aberta, com grandes caixas na carroçaria, onde trazia peixe envolto em camadas de gelo partido e que vinha de Luanda.
Eu gostava mais deste peixe do que do rio, pois o do rio tinha muitas espinhas. Mas do que eu mais gostava mesmo era ir comer (sem a minha mãe dar conta) umas funjadas com os criados. Ainda hoje o meu prato favorito é uma boa funjada de peixe seco ou uma moambada de galinha. Como tive o privilégio de partilhar estas iguarias com quem mais entendia delas, até aos meus 19 anos de idade, comi sempre o funge com as mãos. Asseguro-vos que tem outro paladar comer o funge à mão, tal como o frango de churrasco. Quando comecei a namorar e para que não me julgassem algum troglodita, passei a comer mais “civilizadamente”.
António Guerra
Quinta-feira, 7 de Janeiro de 2010
Governador do Uíje defende maior apoio para projectos de reconstrução da província O governador do Uíje, Paulo Pombolo, disse ontem, durante a realização do acto central das comemorações do Dia dos Mártires da Repressão Colonial, que a província necessita do apoio do Governo central na mobilização de recursos que possam ajudar a resolver os problemas de energia e água, saúde, educação, para além de outros que têm a ver com a reparação das vias de acesso aos municípios do interior.
“Precisamos do apoio do Governo central para ultrapassarmos as dificuldades que ainda enfrentamos nos sectores da saúde, energia e água, educação, e principalmente na reparação das vias de acesso aos municípios do interior da província”, disse.
Paulo Pombolo, que falava para milhares de pessoas que acorreram ao local do acto, realizado no largo do Palácio da Justiça, referiu que o governo local pretende construir um novo Uíje, apostando no desenvolvimento com vista à melhoria das condições de vida das populações locais. O governador disse, na ocasião, que estão a ser preparadas as condições necessárias que vão garantir um futuro melhor, unido em torno dos objectivos estratégicos aprovados pela população da província nas eleições legislativas de 5 de Setembro de 2008.
“Assim, do Bembe a Quimbele, de Maquela do Zombo ao Quitexe, do Sanza Pombo a Kangola e dos Buengas a Ambuíla, estamos empenhados na consolidação da unidade, do espírito do amor ao próximo, privilegiando o trabalho como elemento fundamental que vai levar a província ao desenvolvimento económico e social da região”, frisou.
Pombolo manifestou-se preocupado com o facto de algumas localidades municipais estarem a correr o risco de ficarem isoladas do resto da província. As ravinas e o desabamento de algumas pontes afectam, nesta altura, os municípios do Ambuíla e Quimbele.
Sobre a importância da data, o governador do Uíje sublinhou que “estamos a render uma profunda homenagem aos mártires da repressão colonial, que abriram o caminho para a nossa liberdade e independência”. O governador do Uíje acrescentou que “é neste dia de significado ímpar, que a população da província assume o compromisso de continuar a honrar com espírito patriótico e de bravura os heróis da liberdade, que de forma corajosa enfrentaram e venceram as forças de exploração e da injustiça”, referiu. O governador Paulo Pombolo agradeceu ao Governo central pela escolha do Uíje, para a realização deste importante acto.
Jornal de Angola
Quarta-feira, 6 de Janeiro de 2010
José Lapa enviou-nos esta foto referente à moradia onde estava sediado o Comando do B.Artª 786. Foi tirada em Julho de 1965 .