Vasculhando nos papeis velhos do meu Pai encontrei duas facturas que ele deve ter guardado e trazido na carteira em Julho de 61, quando regressou a Portugal.
Uma, a mais interessante, é de 25 de Março de 61, dez dias depois dos trágicos acontecimentos, e refere-se à compra de 5 pacotes de "Caricocos" na Casa Barateiro de Alfredo Barata.
Estes pacotes redondos traziam 300 cigarros e o meu pai cortava o pacote a meio abrindo-o em duas partes. Não há dúvida que ele se precaveu, garantindo um stok de cigarros que o acompanhariam nas noites longas de vigília na pala do bar do Pacheco, aguardando os ataques da UPA ao Quitexe.
5 caricocos - 93.50
1 marmita - 15.30
No rádio passava a publicidade cantada aos "Cariocos":
"Quem não fuma caricoco
Não sabe o que é bom
Caricoco uê uá
Caricoco uê lá lá"
A outra factura refere-se a refeições no Bar Gomes no Uíge nos dias 20, 21 e 22 de um mês indeterminado desse longínquo 1961
Há pessoas que não esquecemos por muitas e variadas razões! No Quitexe, terra que me fora destinada para cumprir parte da Comissão, tive o grato privilégio de conhecer alguns civis. Não muitos, é verdade, até porque alguns mostravam-se mais distantes e por razões que não vêm ao caso, mas que penso fazerem parte da História. Daqueles com quem privei, gostaria de realçar aqui, hoje, o Sr. Guedes. Conheci-o em finais de Abril de 1972, tinha acabado de chegar ao Quitexe. Almoçava eu no Topete e achei curioso o modo como um Sr., meticulosamente, “torneava” um simples pau com a ajuda duma navalha! Nele concentrava toda a sua atenção, como de uma obra de arte se tratasse. Também eu, criado numa aldeia, tinha por hábito entreter-me de igual forma mas, confesso, muito longe daquela técnica que observava. Terminado o almoço e um pouco atrevidamente, abeirei-me e tentei puxar conversa baseada no trabalho que tão pacientemente executava. Confesso que não me terá dado grande saída e lá terá pensado: «Mas afinal o que é que este maçarico vindo do “puto” quer»?! Se calhar nem pensou nada disto, digo agora a tanto tempo de distância! Mas eu, disposto a dois dedos de conversa, teria de encontrar forma de encetar um diálogo que o cativasse. Enquanto me olhava ainda de soslaio, sentei-me a seu lado e de imediato gabei a sua obra, mostrando curiosidade pela mesma.
«Você acabou de chegar não foi?!... - perguntou .
Por instantes reteve os olhos na farda e olhou para mim em jeito gozão e com um sorriso desconcertante - este sorriso, apercebi-me mais tarde, era-lhe muito peculiar. Percebi que a cor da pele ainda branca e o camuflado novo carregado de goma (que me coçava o pescoço…diga-se), me tinham “atraiçoado”. Creio ter-se apercebido que afinal o que eu queria, e precisava mesmo, era conversar um pouco. E era mesmo! Estava ávido de conhecer tudo aquilo, depois de tanto ouvir falar do Quitexe. Ficou admirado porque, dizia: «normalmente, o pessoal da tropa até nem faz muitas perguntas!!!» Pois…mas a questão è que por lá tinha andado o meu irmão e daí a minha ansiedade. Sentia, além de uma enorme curiosidade, a necessidade de fazer uma ligação entre o terreno e as palavras das epístolas recebidas daquela terra. Já no aeroporto, em Lisboa, pedira-me para lhe enviar notícias de Zalala e do Quitexe e eu queria-as rapidamente.
Diz-me o Sr. Guedes: «Ó amigo, isso não é assim de repente! Então você acabou de chegar!!! Vai ter muito que aprender e vai demorar tempo até perceber alguma coisa! Isto tem muito que se lhe diga!!!...».
A minha ansiedade contrastava com a sua serenidade. E tinha razão, ele tinha todo o tempo do mundo a seu favor. E lá ia moldando o pedaço de pau, como que envolto num espírito de paz do tamanho do Mundo! A sua calma só foi interrompida pela chegada da filha de quem não recordo o nome. Alegre e vivaça, insistia muito nas atenções do pai, agora movida pela minha presença, como é característico nas crianças. Já com a navalha pousada no chão, de sorriso aberto, recebia-a com olhos carregados de ternura. Como as feições tinham mudado com a sua chegada!... Esta, quanto mais atenções recebia, mais queria - e não eram regateadas!... Reconheci então estar ali a mais. Os momentos eram de família e afinal eu não passava dum intruso acabado de chegar àquelas terras. «Não vá, espere lá! Então não quer saber para que é o pau»?! – disse, ainda com a filha sentada no joelho e bem enrolada ao pescoço.
Explicou-me então que andavam por ali uns cães vadios e que no dia anterior se teve de acautelar para não ser mordido ali para os lados da Administração. Estava então a tomar as devidas providências para que tal não acontecesse. Agora sim, o Sr. Guedes mostrava-se mais aberto á conversação. O trabalho que efectuava na madeira, servia apenas para passar o tempo e dar-lhe um aspecto menos agressivo.
Passados eram poucos dias e senti na pele o efeito dos tais cães vadios. Na rua de cima junto ao Geladinha do Quitexe, fui mordido por um deles e que me deixou um tanto maltratado! Lembrei-me então das precauções do Sr. Guedes, com quem me tinha cruzado minutos atrás. Chegou-lhe aos ouvidos e fez-me uma visita. Devo confessar que não esperava e achei curioso o gesto, conhecendo-me ele á tão poucos dias! Durante o ano em que permaneci no Quitexe, muito se conversou e sobre tantas coisas. Até de política falámos, imagine-se!!! E fazia-o desprovido de qualquer receio! Quem pensa que não sabia o que dizia, aí engana-se!... Era um homem que opinava baseado num traquejo evidente de vivências, algumas bem agrestes!
Gostava muito de conversar, mas também é verdade que gostava que o escutassem! Acutilante por vezes e quando necessário, não deixava o interlocutor sem resposta, dando nota de perspicácia oratória e do conhecimento dos temas.
Nunca mais soube de notícias do Sr. Guedes e família, apesar de muito tentar na Net. Nem de alguns outros que meus amigos fizeram o favor de ser.
Onde quer que esteja com a família, saiba que me senti sempre privilegiado com a sua atenção e amizade durante o período em que permaneci no Quitexe.
Um grande abraço e, quem sabe, até um dia.
15 de Janeiro de 2009
António Casal