Do amigo José Lapa recebi estas duas histórias publicadas no jornal Facho do BART 786 no ano de 1965, que têm o Quitexe como pano de fundo. Na primeira glorifica-se a acção do exército português na pacificação da zona, esquecendo-se que só se ganha uma guerra subversiva impedindo que ela comece. A segunda é uma paródia, bem contada que nos faz lembrar as histórias dos grandes caçadores e outros mentirosos.
10 MESES DEPOIS
A 11 de Junho de 1965, depois de longa e penosa viagem, o Batalhão chegou ao QUITEXE onde, hoje, completa 10 meses de estadia.
Não estamos tão longe desse dia, que não possamos estabelecer um confronto, meditar um pouco e sentir a alegria de um trabalho duro, mas largamente compesador!Quando chegamos, o QUITEXE era uma terra triste que ensaiava finalmente, com base no esforço das Unidades que nos antecederam, o regresso à vida que conheceu antes dos dias fatídicos de 1961. A nossa presença trazia uma mensagem de fé, de confiança e boa vontade, que a "Vila do café" sentiu, aceitou e compreendeu. Tão evidentes era o nosso desejo de trabalhar, de levar o bom termo a missão que aqui nos trouxe, que houve entre a população civil uma não menos evidente vontade de colaborar. Assim, enquanto as Forças Armadas levaram, de dia e noite, a todos os recantos da sua ZA, uma presença firme mas isenta de ódio, na que foi "Vila Mártir" a população apagava, aqui e ali, os últimos vestígios de destruição, abria as portas que o terrorismo fechara e alindava a sua Vila! Essa conjugação de esforços, essa perfeita união entre militares e civis, tinha, forçosamente, de dar os seus frutos. A população nativa, refugiada nas matas sob a ameaça dos seus "libertadores",começa a acreditar nas Forças Armadas e, mais do que isso, sente que lhe oferecem incondicionalmente, a liberdade, o direito à vida que procurou, em vão, durante 5 anos de falsas promessas. Receoso, a princípio, apresenta-se um pequeno número que vai engrossando na medida em que, á mata, chegam notícias do acolhimento que lhe é dispensado.
Voltam as Sanzalas a ladear a estrada para CARMONA, o capim é substituido pelas culturas indígenas e, ao domingo, já o QUITEXE nos oferece um ar de festa, nas cores garridas dos trajes e no barulhento e tradicional batuque que o nativo não dispensa.
A Vila tem hoje, incontestávelmente, um aspecto mais limpo, mais cor, mais alegria, outra vida! Não levamos a nossa modestia ao ponto de não aceitarmos a parte importante que essa transformação se deve ao Batalhão de Artilharia 786. Antes, pelo contrário, a aceitamos, nos orgulhamos dela e sentimos que estes 10 meses de sacrifícios sem conta, hão-de constituir um dos periodos mais belos da nossa vida.
J. Pedro
(in Jornal Facho do BART 786 de Abril de 1966)
A PACAÇA ERA BOI
No passado dia 16, cerca das 22H30, sai para os lados de Aldeia Viçosa, em serviço de controle, um grupo de devotos de S. Humberto. ( Queriamos dizer secção de atiradores). A poucos metros do QUITEXE , a equipe de um Unimog que se atrasara, a fim de permitir uma melhor observação de certa zona, foi atacada por um vulto estranho. Estabeleceu-se a natural confusão, houve alarme geral! O "GMC", cozinheiro de profissão, garante tratar-se de um burro transportando dois sacos de couves para o mercado do dia seguinte! O cabo "Morteiraço" grita que é um elefante - aposta que lhe viu a tromba -!
A 100 metros daquela aparição fantasmagórica, o Unimog pára. O seu condutor, um desempoeirado moço com 150 cm bem medidos, "descobre" que é afinal uma "feroz" pacaça que se aproxima, cautelosa, para os liquidar! E, sentido chegar o seu fim, encomendou a alma a Deus e pede a arma ao "GMC". O bicho avança, indiferente á confusão que reina a poucos passos. Avança mais uns metros, enquanto as suas "vítimas" sentem chegada a hora que marca o fim desta efémera passagem pela Terra! O Fernando empunha a G3, mas treme de tal modo que mal consegue segurá-la. A pacaça não interrompe a marcha. Porém, soa um tiro e o "Bolinhas" apercebe-se de que "aquilo" está carregado! A pacaça interrompe a marcha. Cai ! Estão salvos! Atiram mais uns "balásios", não vá o Diabo tecê-las, estes bichos são traiçoeiros! Agora sim, está morta! O medo desaparece, substituído agora por uma alegria enorme. Todos abraçam o "Bolinhas", o seu salvador, e este sente que afinal não é só o nosso Major que mata pacaças! Enquanto se fazem projectos para umas "Cucas" que hão-de regar as saborosas bifanas, aproximando-se da pacaça, abatida com tanta valentia. Mas o que isto? Ah! Ah! Que decepção! "Não é uma pacaça", diz o "Morteiraço". Pois não! Confirma o "GMC". É um boi do Pimenta desabafa o "Bolinhas". "Estou tramado"! E lá fica a tremer, amaldiçoando aquela hora do Diabo em que matou uma pacaça, que afinal era boi!
Zé João
(in jornal Facho do BART 786 de Dezembro de 1966)
Descobri esta crónica datada de 2007 com passagens muito interessantes:
Eurico Mendes - Portuguese Times
Dembos e demos
Dembos são povos indígenas do Norte de Angola, demos são génios que tanto podem ser do bem como do mal e vêm a propósito de um dembo que foi demo: Holden Roberto, nascido a 12 de Janeiro de 1923 em Mbanza Kongo e falecido a 2 de
Agosto em Luanda, com 84 anos. Foi o homem que, nos anos 60, desencadeou a luta armada contra o poder colonial português em África e parecia destinado a tornar-se o primeiro presidente de Angola independente graças ao apoio dos Estados Unidos.
Os nossos destinos cruzaram-se em 1961 nas matas de Angola. Cruzaram-se é como quem diz. Eu era sargento da C.C. 319 e andava pelas matas dos Dembos, onde até os mosquitos e a chuva eram nossos inimigos, Holden circulava por Washington em carro americano de luxo.
Desembarquei em Luanda dias depois da maka dos paraquedistas, que resolveram lançar uma granada de mão da varanda da pastelaria Versalhes, mataram um polícia, cortaram a perna de um furriel e feriram outro.
Criados pelo general Kaulza de Arriaga, os paraquedistas estavam na moda, como mais tarde estiveram os fuzileiros e depois os comandos, mas no fundo eram todos a mesma tropa mal paga, só que com boinas diferentes.Por falar em boinas, recorde-se que o Congresso dos Estados Unidos proibiu o fornecimento de equipamento militar a Portugal, mas o uniforme de campanha dos paraquedistas era americano,denominado modelo PQ/9, assim como a arma individual, o AR-10 Armalite de 7,62mm, em vez da G-3 distribuida no Exército. Em 22 de Novembo de 1963, quando John Kennedy foi assassinado, Kaulza teve este desabafo: “Devia ter sido quatro anos antes para se ter evitado o massacre de 15 de Março de 1961”.
Kennedy deu luz verde para a guerra em Angola, mas antes convém lembrar que Holden era bakongo, a tribo do legendário Reino do Congo, cuja capital era Mbanza Congo, rebaptizada São Salvador do Congo pelos portugueses, que ali chegaram em 1482.
Em 1878, começaram a aparecer missionários protestantes ingleses e americanos, que conquistaram os angolanos com quinino e ideais revolucionários. Uma das revoluções foi a do Tulante Bula, (1913-1915), apoiada pelo pastor J. Bowskill, da Sociedade Baptista Missionária e um dos conspiradores foi Miguel Nekaka, um dos primeiros evangelizadores angolanos, tradutor de passagens da Bíblia do inglês para bakongo e avô materno de Holden Roberto.
Um filho de Miguel, Manuel Sidney Barros Nekaka, foi enfermeiro na Missão Congregacional Americana do Dondi, no Huambo e, em 1942, fixou-se em Leopoldville e, com apoio do pastor James Russel, organizou a União dos Povos do Norte de Angola (UPNA), surgida em 1954 e dois anos depois convertida na União dos Povos de Angola (UPA), para lhe retirar o carácter tribal, que nunca perdeu. A trajectória política do clã Nekaka foi sempre acompanhada pelos americanos.
Holden foi criado em Leopoldville, onde foi baptizado pela Igreja Baptista e, em homenagem ao missionário americano que o apadrinhou, adoptou o nome de Holden Carson Graham. Usou ainda outros nomes como Joy Gilmore em cartas que enviou a Salazar, o que, segundo o anedotário angolano, levou o ditador a comentar: “Eles usam vários nomes para parecerem muitos”.Durante oito anos, Holden foi funcionário na administração colonial belga, mais interessado em futebol do que em política, mas, não podendo ser Matateu, aderiu ao movimento do tio em 1956. A sede da UPA no porto de Matadi, Congo-Brazaville, era frequentada por marinheiros negros americanos que introduziam material de propaganda para Angola e um desses marítimos, George Barnett, fundou no Lobito a primeira célula do movimento em Angola.
Mais tarde, as missões protestantes americanas em Angola tornaram-se também células clandestinas da UPA e, graças aos missionários, Holden estabeleceu ligações com o American Committee on Africa, presidido por Eleanor Roosevelt, viúva do presidente Franklin Roosevelt e activistas dos direitos civicos como o bispo Homer Jack, da Igreja Unida América e Canadá, que o apresentou ao então senador John Kennedy em Setembro de 1959. “Estive duas horas a explicar a Kennedy o sentido da nossa luta em Angola. Ele disse-me que os Estados Unidos tinham uma tradição anticolonial e não podiam continuar a apoiar o regime de escravatura em Angola. Concordámos que era preciso fazer alguma coisa para evitar que os comunistas tomassem conta do movimento de libertação de Angola”, escreveu mais tarde Holden.
As chatices de Salazar começaram a 20 de Janeiro de 1961, quando Kennedy entrou na Casa Branca e dois dias depois o capitão Henrique Galvão se apoderou do paquete Santa Maria e ameaçou rumar a Luanda.
Kennedy estava convencido de que o nacionalismo era a melhor alternativa ao comunismo para os povos do Terceiro Mundo e, além do apoio técnico, incluindo envio de agentes americanos para as bases da UPA, Holden Roberto foi incluido na folha de pagamentos da CIA em 1961 recebendo $6.000 anuais, o que foi posteriormente aumentado para $10.000 e depois para $25.000/ano.
Marcello Mathias, ministro dos Negócios Estrangeiros, escreveu ao seu homólogo americano afirmando “ter razões para considerar os contactos da embaixada americana em Leopoldville com Holden Roberto como suspeitos e inamistosos para Portugal”.
A 4 de Março de 1961, o embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, C. Burke Elbrick, informou o ministro da Defesa, general Botelho Moniz, da decisão da UPA de desencadear ataques em Angola, o Governo português menosprezou a informação.
Na madrugada de 15 de Março, milhares de bakongos pegaram nas catanas e massacraram mais de 1.000 brancos e 8.000 trabalhadores no Norte de Angola. Os brancos improvisaram milícias, que responderam também com violências gratuitas e começou uma guerra que se prolongou por 13 anos, com responsabilidade moral de quem a decidiu ou provocou.
Holden Roberto, que no dia 15 de Março estava nas Nações Unidas, em New York, viu dias depois imagens da matança numa televisão local e escreveu: “Vi homens esquartejados, crianças retalhadas e mulheres violadas. Estava no meio de brancos e não tive coragem de reivindicar a acção.”
Em Luanda, os brancos atiraram o carro do cônsul americano à baia, enquanto em Lisboa, em 21 de Março, houve manifestações frente à embaixada. Apesar dos protestos, o secretário de Estado Dean Rusk visitou Lisboa em 27 de Março com uma proposta de Kennedy, a independência das colónias sob a forma de autodeterminação.
O livro “Engaging Africa: Washington and the Fall of Portugal’s Colonial Empire” (Envolvimento em África: Washington e a Queda do Império Colonial de Portugal), de Witney Schneider, vice-secretário de Estado adjunto para os Assuntos Africanos durante a administração Clinton, revela que Paul Sakwa, assistente do vice-director de planeamento dos serviços de espionagem CIA elaborou um plano, o “Commonwealth Plan”, que visava convencer Portugal a conceder a auto-determinação a Angola e Moçambique, após um período de transição de oito anos, durante o qual seria realizado um referendo nas duas colónias para se determinar que tipo de relacionamento seria mantido entre os dois territórios e Portugal após a independência. Durante esse período, Holden Roberto e Eduardo Mondlane, líder da Frelimo surgida em Moçambique, seriam preparados para serem os líderes dos novos países.
“Para ajudar Salazar a engolir a pílula amarga da descolonização, Sakwa propôs que a NATO oferecesse a Portugal 500 milhões de dólares para modernizar a sua economia”, escreve Schneider.
Um ano depois a proposta foi ampliada pelo diplomata Chester Bowles, mais 500 milhões de dólares de ajuda a Portugal durante um período de cinco anos, ou seja um total de mil milhões de dólares durante o período de transição.
O plano dos EUA, apresentado em Agosto de 1963 pelo vice-secretário de Estado George Ball, esbarrou na inflexibilidade da resposta de Salazar: “Portugal não está à venda”.
Em 1962, a CIA previa a derrota militar portuguesa em África, mas enganou-se.
Em 1970, um estudo do National Security Council sobre a África Austral excluía peremptoriamente a “possibilidade de um colapso português em África”.
Com efeito, em 1974, o Exército português controlava todo o território, as operações tinham cessado em 1972, a livre circulação era um facto e os movimentos estavam minados por divisões internas. Agostinho Neto mandara fuzilar vários comandantes do MPLA e o movimento estava recuado na Zâmbia. Na FNLA, Holden também ordenara o fuzilamento de dezenas de oficiais e sucumbira à influência do cunhado, o (então) presidente do Zaire, ao ponto de Mobutu Sese Seko ter
proposto que permitisse a independência de Angola, aceitando que Portugal escolhesse o nome de quem desejasse colocar no lugar de Holden Roberto, como o embaixador Luiz Gonzaga Ferreira revelou no livro “Quadros de Viagem de um Diplomata: África-Congo/Zaire-Angola”.
Quanto à UNITA, de Jonas Savimbi, que nas administrações Reagan e Bush pai se tornara o principal aliado de Washington em Angola, encontrava-se abaixo da linha do caminho-de-ferro de Benguela sem actividade militar conhecida e mais ou menos feita com a tropa portuguesa.
Em Janeiro de 1975, Holden, Neto e Savimbi assinaram com o Estado português oAcordo do Alvor, que marcava a independência de Angola para 11 de Novembro desse ano. Na véspera, a bandeira portuguesa desceu pela última vez no palácio do Governo, 492 depois das naus portugueses ali terem largados ferros.
Proclamada a independência, Holden Roberto borrifou-se no Acordo do Alvor, reuniu um exército com o que restava da FNLA, mercenários portugueses e ingleses, tropas da África do Sul do apartheid e avançou sobre Luanda.
Foi travado pelo MPLA e, sobretudo, pelos cubanos às portas de Luanda. Ainda se juntou a Savimbi para proclamar a efémera República Democrática de Angola, com sede no Huambo, mas que se desfez com a retirada sul-africana e não obteve apoio de nenhum país. Nessa altura, a FNLA e o seu líder eram já uma sombra do passado. Holden exilou-se em Paris e só voltou a Luanda em 1991. O apagamento progressivo do velho líder bakongo foi consumado em 1992, nas primeiras legislativas democráticas, a FNLA obteve apenas 2,4% dos votos e cinco assentos no Parlamento. Crises internas levaram ao afastamento de Holden da presidência do partido, passando a mero presidente honorário.
Em 1974, os americanos já previam a queda de Holden e passaram a apoiar Savimbi para tentar impedir uma vitória soviética e (ainda por cima) cubana em Angola. Mas garantida a posse de Luanda, o Governo do MPLA conseguiu o reconhecimento da OUA e de Portugal em Fevereiro de 1976 e seguiram-se outros países.Os EUA, embora a Gulf continuasse a exploração do petróleo de Cabinda, só em 1993, durante o governo Clinton e 18 anos após a independência, reconheceram a República Popular de Angola.
Que me perdoem os meus amigos bakongos, mas memória que guardo do Holden Roberto é a de um líder racista e tribalista e prende-se com o Cólua, uma das pequenas localidades dos Dembos cuja população branca foi massacrada.
No dia 2 de Abril de 1961, o capitão Castelo da Silva, comandante da 7a CCE, que estava em Aldeia Viçosa, mandou um pelotão para o Cólua, com uma viatura de reparação de pontes, a fim de recolher os 30 cadáveres de homens, mulheres e crianças chacinadas. Dois dias depois, o pelotão ainda não voltara e o próprio capitão foi num jipe à sua procura, acompanhado pelo tenente Jofre dos Prazeres, dois soldados e um cipaio. O capitão cruzou-se com o pelotão que vinha de regresso, mas preferiu avançar até ao Cólua reforçado com alguns homens do pelotão. Mas no dia seguinte, o capitão ainda não tinha voltado e o pelotão foi à sua pocura e encontrou, nas proximidades do Cólua, os corpos esquartejados dos cinco militares. O jipe, as armas e os corpos de seis militares tinham
desaparecido. Mais tarde, um avião da Força Aérea avistou e socorreu dois dos desaparecidos, que tinham conseguido fugir e contaram que tinham caído numa emboscada. Um ano depois, a companhia de Aldeia Viçosa recebeu instruções para reabrir a picada do Cólua e o trabalho decorreu normalmente vários dias, mas uma manhã o pelotão foi emboscado.
O primeiro tiro furou a blindagem do unimog e o capacete de um soldado, que teve morte imediata. A tropa reagiu ao ataque, mas decidiu regressar a Aldeia Viçosa em busca de reforços abandonando o morto no capim. Quando voltaram, mais tarde, não encontraram o corpo do militar morto. Dias mais tarde, a C.C. 319 recebeu ordens para ocupar o que restava do Cólua.
O Cólua era num morro, onde meia dúzia de brancos tinham construído as suas lojas, que viviam da compra do café aos pretos das sanzalas vizinhas do Quingenga e Cauanga e da venda das mercadorias que iam buscar a Carmona.
Das casas só restavam algumas paredes e a sanzala tinha desaparecido. A 319, nessa altura já cacimbada, tratou de instalar-se o melhor possível e ergueu uma cerca de arame farpado. Uma manhã, estávamos ocupados a carpinteirar, quando vimos sair da mata um grupo de 30 negros ou mais, com túnicas brancas e um pano branco num pau.
Pensámos que vinham em paz e ninguém foi buscar a arma. Paz uma gaita. Já dentro do acampamento, ouviu-se um apito, surgiram as catanas escondidas debaixo das túnicas e uma pistola metralhadora começou a matraquear.
Dos nossos, três sofreram catanadas nos braços e nas costas. Valeu-nos o capitão lançar uma granada de mão que neutralizou o tipo da metralhadora (que mesmo ferido fugiu sem largar a arma) e um sentinela que abateu dois a tiro.
Mas o grande herói foi médico, um tenente miliciano gay, que era de Viana do Castelo. No meio da confusão, dois bailundos que trabalhavam para a companhia como carregadores, procuraram refúgio no posto clínico, o tenente tomou-os por turras, empunhou a parabelum e matou os pobres.
Noutro país daria lugar a julgamento em tribunal militar, mas no Portugal de Salazar os bailundos foram convertidos em turras e deu direito a medalha entregue em solene cerimónia no dia 10 de Junho, no Terreiro do Paço, em Lisboa.
Quanto às túnicas brancas, vim a saber mais tarde que eram tocoistas, seguidores da seita evangélica Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo em África, de Simão Gonçalves Toco e apoiada pela Watch Tower, seita fundada em 1872 na Pensilvania e cuja sede é em Brooklyn, New York.
Para os tocoistas, Simão Toco é o profeta nacionalismo angolano. Esteve preso no campo de S. Nicolau, espécie de Dachau portuguesa, mas foi exilado em 1963 para a ilha de S. Miguel, onde esteve 11 anos como faroleiro nos Ginetes.
Dias depois do inesperado assalto, um pelotão capturou nas matas o bailundo Severino José, que dizia ser obrigado a acompanhar os turras desde o 15 de Março e revelou com pormenores horrorosos a sorte dos desaparecidos homens do
capitão Castelo e Silva e do soldado da 321ª CC.
Segundo o Severino, o Bomboco e Simão Lucas, chefes da sanzala do Cólua fugida nas matas, tinham obrigado os bailundos a cozinhar os quatro soldados agarrados no Cólua, depois de lhes terem cortado os dedos e as “matubas” (testículos) pendurando-os nuns paus para secarem.
Um sargento que fugira do Cólua foi capturado pelo pessoal da sanzala Quinguenga e também cozinhado e comido num festim em que, segundo a testemunha, participaram bakongos e bailundos, “pois os que se negavam a isso eram mortos e igualmente comidos, tendo o declarante assistido à morte de pelo menos 25 bailundos e que o declarante teve igualmente de comparticipar.”
O nosso soldado morto na emboscada também acabou no espeto. O canibalismo existiu no passado em todo o continente africano e em certas tribos do mais recôndito da selva africana a prática arrepiante ainda parece perdurar. Há anos, um grupo de aviadores italianos enviados pela ONU para a República Democrática do Congo caiu nas mãos de uma dessas etnias antropófagas e deles só sobraram os esqueletos. Mas os povos do Cólua não são propriamente primitivos, há mais de 400 anos que estão em contacto com os brancos, o que levanta o problema de saber em que consistiu afinal a missão civilizadora dos europeus em África, neste caso portugueses. Mas acontece que a antropofagia não existe apenas nas sociedades primitivas. Tal como hoje, nos Estados Unidos 2007 de George W. Bush e
a embrulhada do Iraque, também no Portugal 1961 de Salazar e Angola, havia muito político a tentar comer os outros. Por parvos.
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