Domingo, 26 de Outubro de 2008
É com muito agrado que vamos recebendo notícias da reconstrução ou reabilitação de equipamentos um pouco por toda a Angola. Realçamos hoje a igreja do Quitexe que nos aparece de cara e corpo lavado, eu diria quase irreconhecível. Anos 70
2005 2008 (foto pescada do blogue - Luis Fernando Jornalista)
A Missão dos Capuchinhos e a Igreja do Quitexe
( Do livro Quitexe 61 - Uma Tragédia Anunciada - João Nogueira Garcia)
A Missão dos Capuchinhos Italianos, em Camabatela, terá sido fundada no ano de 1947/48 como sede da Diocese de Ambaca da qual o Quitexe fazia parte. Essa data corresponde à minha chegada a Angola e, um ano depois, ao Quitexe. Num largo planalto junto à povoação de Camabatela, sede do concelho de Ambaca, foram por eles construídos enormes pavilhões e áreas residenciais, onde viviam dedicando o dia à oração, ao ensino do português, das artes e dos ofícios.
Tanto as missões católicas, como as protestantes eram apenas toleradas pela Administração, servindo de contraponto à dureza da Administração Colonial Portuguesa em relação, principalmente, aos jovens africanos. O confronto era permanente entre os estudos na missão e o arregimentar à força para a escolha do café nas roças, na altura da colheita.
Só por volta do ano de 1951/52, eles vêm tentar a sua implantação no Quitexe onde predominam as igrejas protestantes inglesas e americanas. Aos poucos vão criando pequenos núcleos, onde vão instalando os seus catequistas africanos.
Nessa altura, a minha casa é uma espécie de abrigo, onde os viandantes aportam para mata-bicharem (pequeno almoço de garfo) ou almoçarem, situação que vou tolerando tendo em conta que não há pensão no Quitexe. Comem e bebem de borla mas, quando por vezes vou a Luanda, esses comensais passam por mim e não me conhecem. Quando casei, em 1951, resolvi, por uma questão de intimidade, acabar com este apoio, exceptuando, claro, os fazendeiros e outras pessoas amigas que tinha muito prazer em receber. Entre eles havia dois padres italianos dos Capuchinhos que todas as semanas vinham um dia ao Quitexe, em serviço missionário. Cá mata-bichavam e almoçavam.
Os anos correm e, entretanto a população branca aumenta e em cada branco era suposto estar um católico. Tendo em conta que o Quitexe se desenvolvia cada vez mais resolvem, para intensificar a acção missionária, construir uma igreja. Lá andam de comerciante em comerciante e de fazenda em fazenda, angariando fundos para ajudar a construção. Eu, como tinha a cerâmica sou abordado para arranjar o tijolo “Eu não sei se vos posso fornecer o tijolo todo de borla, pois o que pretendeis fazer é uma igreja muito grande, mas depois se verá...” .
Nesse tempo já nada me ligava à igreja católica, mas apreciava a acção evangélica dos missionários, fossem eles católicos ou protestantes. Do catolicismo eu apenas conservava os valores dos princípios morais do cristianismo. A igreja lá se construiu num alto sobranceiro à povoação logo a seguir à minha casa comercial.
Entretanto, os dois capuchinhos começaram a ser solicitados pela nossa vizinha Dª. Helena para também irem comer a sua casa. Como era uma senhora muito católica, eles sentiam-se mais à vontade e, agora raramente apareciam para comer, mas passavam sempre para nos cumprimentar.
A igreja foi inaugurada com pompa e circunstância. Mais tarde, os padres apareceram para pagar parte do tijolo, pois reconheciam que, efectivamente foi uma quantidade muito grande. Eu já tinha decidido oferecer o tijolo todo. Ficaram muito gratos.
Apenas lamentava que os capuchinhos fossem todos italianos. Por onde andavam os missionários portugueses? Talvez em Itália, no Vaticano?
Domingo, 19 de Outubro de 2008
Apesar do turbilhão de violência e revolta independentista que assolava o Norte de Angola, havia quem na região do Quitexe insistisse em continuar a praticar, como anteriormente, injustiças. Quando tal acontecia, os militares estavam sempre disponíveis para apoiar a acção administrativa. Chegou mesmo a suceder serem os próprios militares a darem conhecimento de alguns desmandos à Administração. As autoridades militares e civis interessavam-se verdadeiramente em promover o bem-estar das populações.
Administração do Quitexe
Contudo, havia problemas estruturais de difícil resolução, como era o caso dos milhares de bailundos engajados no Sul para trabalharem sob contrato nas fazendas de café do Norte de Angola. Quando se procedia ao seu repatriamento, depois de terem cumprido os contratos, o que é que se verificava pelas folhas de salários? Dois ou três capatazes recebiam, em remuneração pecuniária, tanto como 30 a 40 trabalhadores negros.
Esta situação de flagrante injustiça social, diariamente constatada, fazia com que os próprios funcionários administrativos, sem nada poderem fazer e agitando nervosamente as folhas de salários, se questionassem entre si em surdina: Vejam, vejam isto! Será que, a continuarmos assim, poderemos algum dia ganhar esta guerra? E havia mesmo quem, aproveitando o curto clima emocional de revolta assim criado, respondesse de imediato no mesmo tom e fugidiamente: Se eu estivesse no lugar deles, era terrorista de certeza absoluta. Aqui a palavra terrorista era apenas utilizada no sentido de guerrilheiro!
De vez em quando, e quando menos se esperava, propagava-se, com a velocidade de uma tempestuosa onda, enorme confusão de espanto, medo, impotência, perplexidade: alguns civis ou mesmo uma força militar em missão de patrulha haviam sido apanhados numa emboscada, tendo sofrido, mortos e feridos.
Nessas alturas, procedia-se, com a maior rapidez possível, à evacuação dos feridos graves, mobilizando-se os adequados meios aéreos. Quanto aos mortos, no dia seguinte, havia mais um cortejo fúnebre em direcção ao cemitério.
Gravados indelevelmente no meu espírito, entre muitas outras tristes, dolorosas e inesquecíveis recordações, ficaram a ecoar para sempre: os passos pesados e arrastados das botas dos que transportavam as urnas cobertas com a bandeira nacional; os vigorosos, mas magoados, discursos proferidos em tão fúnebres momentos; e as salvas estrondeantes em honra dos muitos militares portugueses que assim desceram às sepulturas. Tratava-se na maior parte dos casos de jovens que ainda no dia anterior gracejavam, riam, sonhavam...!
Enquanto tudo isto ia acontecendo: em Setembro de 1961, Salazar tinha entretanto acabado com o Estatuto do Indigenato na Guiné, Angola e Moçambique e elevava à categoria de cidadãos portugueses todos os habitantes daqueles territórios (1); em Dezembro de 1961, Goa, Damão e Dio caíam nas mãos da União Indiana; e ao longo de todo o ano de 1962 foram reprimidos com particular brutalidade todos aqueles que na Metrópole se vinham opondo ao regime ditatorial e insurgindo contra a guerra colonial, sendo de salientar, neste processo de contestação, as movimentações dos estudantes universitários constituídas por inúmeras acções de desobediência, greves e manifestações.
No interior da Administração
Eu, por meu turno, com base na experiência colhida no terreno e no clima social que o envolvia, comunicava para os meus pais:
Quitexe, 11 de Maio de 1962.
Com respeito à vossa possível vinda para Angola (2), os senhores melhor sabem o que fazer do que eu. Devo no entanto dizer-lhes o seguinte:
Angola é sem dúvida uma grande terra e com largos recursos... Tem terrenos onde se pode cultivar uma grande variedade de produtos e o seu subsolo é riquíssimo... Angola tem condições para ser uma terra de enorme progresso. Mas há a questão do terrorismo...
O terrorismo, aqui, por enquanto, é praticado com pequenos tiroteios..., tiros isolados, após os quais, os atacantes fogem sem deixarem rasto... Possuem pouco material. Algumas das armas, que têm, são as que roubaram aquando da eclosão dos acontecimentos de 15 de Março de 1961.
Os países vizinhos de Angola, principalmente a República do Congo (Brazzaville) e a República do Congo (Léopoldville), atingiram há pouco a independência. Em termos económicos e políticos, o Congo (Brazzaville) goza de certa estabilidade..., mas o Congo (Léopoldville) está a ser devorado pela fome, pela doença e pela guerra civil. Durante os próximos dez anos, estes países não terão grandes possibilidades de apoiar financeiramente os nossos inimigos.
Enquanto estes países se encontrarem assim, tudo em Angola correrá bem..., salvo os pequenos ataques isolados, aqui e além, dos terroristas. Mas, quando beneficiarem de uma situação mais desafogada: apoiarão, sem olharem a meios, a chamada libertação de Angola; e fornecerão das armas mais modernas aos denominados nacionalistas angolanos...
E, ainda por cima, nesta guerra, nem todos os portugueses estão unidos... Em Lisboa e noutros lugares de Portugal continental já começaram a fazer distúrbios...
Se todos os portugueses estivessem unidos, apesar do número dos inimigos (internos e externos) ser superior, com certeza que venceríamos. Mais tarde ou mais cedo, os terroristas acabariam por terminar a luta, cônscios de que nada fariam contra nós..., mas assim...
Escusado será dizer que isto não se deve relatar..., mas esta é a situação... Mal por mal, mais vale estarmos na terra, que nos viu nascer.
A terminologia utilizada na altura era a que fielmente se transcreve. Curiosamente, com o decorrer do tempo, o conceito de terrorista começa a perder o seu significado negro que lhe adveio das chacinas perpetradas, em 15 de Março de 1961 e nos dias e semanas que se seguiram, pela U.P.A.. De tal maneira aquele conceito se esvaziou do terror que lhe estava associado que, por último, era utilizado carinhosamente na comunicação familiar para admoestar, com a necessária brandura, a rebeldia ou o excesso de actividade das crianças mais pequenas.
Quanto à minha posição, em relação ao futuro de Angola, tendo na altura apenas 20 anos, acreditava sinceramente na ideia de uma pátria pluricontinental e multirracial, desde que, sem ditadura, tal fosse a vontade livremente expressa pelas populações interessadas e numa base de absoluta igualdade. Afinal, o grande espaço económico e político, constituído pela União Europeia, que necessariamente se veio a impor e ainda está em fase de aprofundamento e alargamento, não é na prática a realização de um ideal semelhante? Se portugueses, espanhóis, franceses ingleses, alemães... podem simultaneamente ser cidadãos europeus, por que é que portugueses, cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses, angolanos, moçambicanos, timorenses e brasileiros não podem, se o desejarem, cooperar intensamente entre si e serem ao mesmo tempo cidadãos lusófonos?
(1) Em Abril de 1962, são promulgadas novas Leis do Trabalho Rural para as então Províncias Ultramarinas, adoptando, os antigos Serviços de Curadoria, a designação de Instituto do Trabalho.
(2) Era a resposta a mais uma sondagem que os meus familiares faziam junto de mim, com vista à sua eventual saída da terra em busca de melhores condições de vida. Afinal não era o que quase toda a gente estava a fazer, no mundo rural português, emigrando em massa para a França, Alemanha, Suíça, Luxemburgo, etc.?
Arlindo de Sousa
Domingo, 12 de Outubro de 2008
O Concelho do Dange criado na sequência dos acontecimentos de 15 de Março de 1961 formou-se: com o Posto Administrativo do Quitexe (anteriormente pertencente ao Concelho de Ambaca – Camabatela) que passou a ser o posto – sede; com o Posto Administrativo de Cambamba (salvo erro separado do Concelho dos Dembos em Quibaxe); e com os postos administrativos de Vista Alegre e Aldeia Viçosa (antes de 15 de Março de 1961 simples povoações comerciais).
Posto administrativo de Aldeia Viçosa - década de 70
Já disse em outro momento das minhas memórias do Quitexe, que eu estava em Aldeia Viçosa por autorização particular do Governador do Distrito do Quanza Norte, Major Silva Sebastião. Formalmente o meu lugar era no Quitexe. Como entretanto o verdadeiro titular do lugar de Aldeia Viçosa se apresentou, despedi-me do António Augusto Ribeiro França e, creio que em Janeiro ou Fevereiro de 1962, fui para o Quitexe.
No Quitexe, estavam já, se não me engano, o Administrador Rodrigo José Baião, o Secretário Políbio Fernando Amaro Valente de Almeida, o Chefe de Posto Largo Antunes (que se encontrava ali à espera de que fossem criadas as indispensáveis condições para ir para Cambamba) e dois ou três aspirantes interinos (como era o meu caso). Pago com verbas da Comissão Municipal do Quitexe, de que era oficialmente funcionário, estava o Varela, um cabo-verdiano aparentemente sem grandes ambições materiais, todavia um bom profissional e excelente pessoa. Onde estará hoje o amigo Varela, que todos nós tanto estimávamos?
Na altura, em relação à Administração, a preocupação máxima era pô-la a funcionar em pleno, uma vez que, como já disse anteriormente, o Quitexe antes era um mero posto administrativo e, naquela qualidade, teve como último Chefe de Posto, Nascimento Rodrigues, que, como disse num outro momento, eu conheci em plena estrada Camabatela – Quitexe.
O edifício, que antes tinha albergado o extinto posto administrativo e daí em diante ia acolher a Administração, estava ainda fortificado com sacos de areia, inclusive nas janelas, e alguma tropa pernoitava no interior. Procedeu-se pois à sua completa organização tendo em vista a normalização crescente da vida da vila e da área envolvente.
Durante a operação geral de limpeza, organização e arrumação, certo dia, de uma das velhas pastas saltou um dedo já ressequido. E no balcão de madeira, de atendimento, viam-se bem nítidas as marcas de algumas das catanas que em 15 de Março de 1961 chacinaram muitos dos habitantes do Quitexe. Inclusive, mulheres e crianças. Tal não foi a violência do massacre daquele fatídico dia!
Arlindo de Sousa
Quinta-feira, 9 de Outubro de 2008
QUITEXE - Sede do Concelho do Dange. Primitivamente era a sede da extinta Circunscrição do Encoje. Após esta extinção passou a Posto em 11.3.1932. O Posto Militar do Dange passou a Civil em 1921, por Decreto nº 80. O Concelho do Dange com sede em Quitexe foi criado por Portaria nº 11 740 de 26.7.1961.
Portaria da concessão do brazão - Port.ª n.º 19 076 de 15/3/62 Boletim Oficial n.º 13/62
Dados retirados do site da Associação dos Amigos do Uíge
Três escolas, uma construída pelo Governo e duas pela organização não governamental Save The Children, permitiram o enquadramento de cinco mil 923 novos alunos no município do Dange – Quitexe, localidade que dista a 40 quilómetros da sede provincial do Uíje.
Segundo o chefe em exercício da área municipal da Educação, Joaquim Kifani, do número de alunos, 622 foram enquadrados na iniciação, enquanto que nas 1ª, 2ª, 3ª e 4ª classes, respectivamente, foram matriculados quatro mil 326 alunos. Na mesma esteira, estão a frequentar o primeiro ciclo 863 alunos, ao passo que 112 estão no segundo ciclo de ensino.
O município possui agora 68 escolas em funcionamento, incluindo um colégio privado, no qual são ministrados cursos de formação profissional e alguns cursos de formação média (ciências sociais e biológicas).
Pelo menos 454 professores asseguram as aulas no município, mas, no ponto de vista de Joaquim Kifani, o número ainda é insuficiente. “Carecemos de mais professores para o II ciclo, porque, por exemplo, não temos nenhum professor formado na especialidade de química”, lamentou.
Na sua estatística, o município necessita de pelo menos 60 professores, para cobrir todos os níveis de ensino. Joaquim Kifani fez saber que o sector da Educação no Dange - Quitexe recebe, com regularidade, da Direcção Provincial da Educação no Uíje, material didáctico que é distribuído em todas as escolas existentes na localidade, embora, como referiu, em quantidades irrisórias.
Informou que cerca de 500 crianças se encontram fora do sistema normal de ensino.
Joaquim Kifani acredita que as acções empreendidas pelo Governo em relação à construção de mais escolas vão permitir que os mesmos sejam enquadrados no próximo ano lectivo.
Necessidade de mais médicos e enfermeiros
O município de Dange - Quitexe necessita de 16 enfermeiros e dois médicos para cobrir a carência de pessoal no que tange ao pessoal sanitário, disponível para atender a demanda de pacientes que acorrem diariamente às unidades sanitárias da localidade.
Jornal de Angola - José Bule | Uíje
Terça-feira, 7 de Outubro de 2008
Natal 61
Passei a noite de consoada e o dia de Natal de 1961 em Aldeia Viçosa. Foi uma estopada. A ideia mais enraizada que me ficou foi a de ver o pessoal, particularmente triste por se encontrar longe da terra e da família. Viver a quadra natalícia, em que desde há cerca de dois mil anos, se apregoa "Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade e Glória a Deus nas Alturas", em guerra é de todo deprimente.
Não me recordo de que durante aqueles dias se tenham verificado actos hostis na área do nosso posto administrativo. Creio que os guerrilheiros, seres humanos como nós, provavelmente pensaram que a santidade daqueles dias não devia ser profanada com actos bélicos.
Na altura ouvia-se muito a rádio. A ideologia oficial era constantemente repetida. A canção "Angola é Nossa" era passada a todo o momento e o mesmo acontecia com as interpretações do género daquela em que o Fernando Farinha cantava o incansável e corajoso soldado português com as "fardas em farrapos".
A Emissora Nacional também era muito ouvida. Não escondo que no meu imberbe espírito calava fundo a voz do locutor quando dizia: "Aqui Lisboa, Serviço Ultramarino da Emissora Nacional". Para mim, na altura completamente cego em matéria política como em quase todos os outros assuntos do mundo do conhecimento, era a prova de que não estávamos sós.
Lembro-me também dos programas de um tal Ferreira da Costa. Para os incautos como eu, o homem era convincente. Parece que as suas crónicas até fizeram com que muitos portugueses metropolitanos tivessem tomado a resolução de emigrar para Angola. Gente que começou a ser designada pelos discordantes do regime mais críticos de "Tropa do Ferreira da Costa".
Em relação à Emissora Nacional havia igualmente aquele programa intitulado "Rádio Moscovo não fala verdade". Enfim, sem que então eu de tal tivesse consciência, era a guerra da propaganda. Que, acabava por produzir um efeito importante nos ouvintes. Abrindo os olhos a uns. Aumentando a cegueira de outros. Como era o meu caso.
A Rádio Brazaville também era muito ouvida. O discurso repetido dos meios de comunicação portugueses começava a levantar suspeitas de que, do apregoado à realidade, havia um fosso enorme. Daí o ter começado a impor-se como princípio generalizadamente aceite a ideia de que, se quiséssemos saber o que realmente se passava nas colónias portuguesas, o melhor era recorrer às emissoras estrangeiras então captadas em Angola.
Arlindo de Sousa
Sexta-feira, 3 de Outubro de 2008
Cerca de uns dois meses depois de chegar a Aldeia Viçosa, recebemos no posto uma mensagem pelo transreceptor P19 convocando-me para me apresentar com urgência na capital do distrito. O texto muito sintético, como era próprio daquele tipo de mensagens, era pouco esclarecedor e eu verdadeiramente fiquei sem saber o motivo da convocatória.
Dado que não havia quaisquer outras possibilidades de transporte, o Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França colocou o Jeep do posto, devidamente abastecido de gasolina, à minha disposição e foi nele que, sozinho, fiz o percurso de cerca de 300 Km que separa Aldeia Viçosa da então cidade de Salazar (actual Ndalatando), via Entre Rios (uma dependência da Fazenda Pumbassai), Companhia Agrícola do Pumbassai, Camabatela, Samba Caju, e Lucala.
Chegado a Ndalatando, fiquei a saber, concretamente, do que tratava. Quando ainda estava em Luanda, concorri simultaneamente para o Quadro Administrativo e para a Força Aérea. Já estava eu no Quadro Administrativo, a Força Aérea convocava-me para efeitos de inspecção a realizar em Luanda. Instado a optar, abandonei a ideia da Força Aérea e declarei pretender ficar no Quadro Administrativo.
Depois de, a seu desejo, ter ido à presença do Governador, Major Silva Sebastião, dar algumas informações sobre a situação na área do nosso posto administrativo, voltei com o Jeep para Aldeia Viçosa. Durante o percurso, na zona de Samba Caju fui apanhado por uma monumental trovoada acompanhada de chuva intensíssima. Parecia que o diabo tinha saído do Inferno.
De tal modo que, dois ou três quilómetros a seguir àquela localidade, encontrei um camião parado e um tractor virado. Pensei logo no pior. Contudo, como vi o motorista do camião, parei e o que se estava a passar era que uma faísca acabava de matar o condutor do tractor. Resultado: Voltei a Samba Caju para avisar as autoridades locais, que me acompanharam até ao sítio do acidente, e fiz-me de novo à estrada.
Entre Camabatela e a Pumbassai, cruzei-me com um Jeep, o que dada a perigosidade da zona era um acontecimento. Instintivamente ambos parámos com enorme espanto e dirigimo-nos um ao outro. Depois dos esclarecimentos recíprocos, fiquei a saber que o homem que estava à minha frente era o Chefe do então ainda Posto Administrativo do Quitexe, Nascimento Rodrigues. Conheci-o naquele momento e nunca mais o voltei a ver. Se ele ainda for vivo, poderá confirmar este meu registo.
A impressão que naquele momento gravei na minha memória foi que estava na presença de um homem que, em consequência de meses antes ter vivido os massacres da área do Quitexe, estava muito destroçado. Mantendo contudo uma atitude de grande dignidade.
Durante as breves explicações trocadas, o Chefe de Posto Nascimento Rodrigues quase que me chamou de inconsciente por eu estar a viajar sozinho para Aldeia Viçosa. Disse-me que fazer o trajecto sem protecção era arriscar demasiado. Um perigo próximo de um suicídio. Nascimento Rodrigues tinha plena razão. Naquele momento eu vivia realmente a inconsciência dos meus 18 anos de idade. Despedimo-nos. Como disse acima, nunca mais o vi. Felizmente, acompanhado da minha boa estrela, consegui regressar sem problemas a Aldeia Viçosa.
Encontrando-me outra vez mergulhado na lufa-lufa diária de Aldeia Viçosa, rapidamente esqueci os ponderados avisos do homem que no trágico dia 15 de Março de 1961 chefiava o Posto Administrativo do Quitexe, então pertencente concelho de Ambaca em Camabatela, distrito do Quanza Norte. Durante o pouco tempo que ainda permaneci em Aldeia Viçosa, foram várias as vezes (semanalmente) em que, acompanhado pelo Paulino ou por outro cipaio entretanto recrutado, fui buscar víveres à Fazenda Pumbassai.
Costumava levar o Jeep e um atrelado emprestado pela tropa. No regresso, com o atrelado carregado, e às vezes ainda com alguns bailundos empoleirados em cima da carga, as subidas eram feitas a passo de caracol. Quando tínhamos a pouca sorte de chover, com o piso da estrada transformado numa camada de lama escorregadia como manteiga, a viagem era uma odisseia.
Lembro-me de uma vez em que, num dia em que o estado do tempo se apresentava normal, num troço do itinerário ladeado de capim, atravessaram a estrada à nossa frente vários veados. O pessoal quis logo parar para dar lhes dar caça. Fiz-lhes a vontade. Descemos todos e andámos por ali um bocado aos tiros. Não matámos nada. Para o futuro ficou apenas a memória da minha, então, mais que provada inconsciência. Apenas os 18 anos de idade podem justificar tamanha falta de calo e imponderação.
Arlindo de Sousa