Segunda-feira, 29 de Setembro de 2008
Já disse anteriormente que em Aldeia Viçosa tudo estava a ser feito, na medida do possível, para recriar um clima de normalidade. Mas havia o dilema constante de termos de enfrentar diariamente inúmeras dificuldades. Uma delas, e seguramente a mais preocupante, residia no facto das populações autóctones estarem todas fugidas nas matas. Não se via ninguém. Perscrutava-se o horizonte e nada. Parecia que estávamos num planeta desabitado.
Os sinais de vida, que por desdita de todos acabavam por reforçar o ambiente de morte, só se manifestavam quando surgiam as emboscadas. Nesses momentos, o atroz silêncio, em que o chamado sexto sentido nos dizia existirem guerrilheiros à espreita, transformava-se inopinadamente em Inferno. Passado o ataque, desde que não houvesse feridos ou mortos a lamentar, tudo voltava novamente a um quietude de cortar à faca. Apenas se fazia ouvir a monotonia do ruído dos motores das viaturas. E também o ranger das molas, com a resistência constantemente colocada à prova pelo piso irregular das estradas.
A excepção à realidade descrita, ainda que inicialmente muito ténue, era constituída pelos bailundos que esforçada e dedicadamente contribuíam, com o seu trabalho e lealdade, para a realização do que veio a ser designado por milagre da recuperação económica. Para o referido milagre, verificado entre 1961 e 1975 data da Independência de Angola, também contribuíram depois as populações autóctones à medida que foram regressando das matas.
Os bailundos cooperaram também com o seu heroísmo. Sozinhos nas fazendas, não foram poucas as vezes que resistiram heroicamente a grupos então adversos. Frequentemente com o sacrifício da própria vida.
Na Fazenda Vila Alice, mesmo em frente a Aldeia Viçosa, presenciei um sarilho nocturno, que foi resolvido pela capacidade de resistência dos trabalhadores bailundos, apoiados por um destemido grupo de militares do pelotão Companhia de Caçadores 89 que guarnecia Aldeia Viçosa. Era de noite. Acompanhei os militares e mais uma vez se manifestou a minha inexperiência. Chegados ao local, ao levantar-me para sair da viatura fiz um disparo acidental de que felizmente apenas resultou um furo na chapa, indo a bala da minha pistola-metralhadora FBP desaparecer no chão. Às vezes, a sorte protege-nos.
Quem lidou com aquela arma, sabe muito bem que era muito falsa. Mas esta razão não é suficiente para que não confesse mais uma vez a minha total inexperiência na respectiva utilização. E o desconhecimento, em matéria de armamento, às vezes pode causar prejuízos irreparáveis. Ao próprio e a terceiros.
Passados dias também se registou um problema na Fazenda Cassequel em que, entre outras atitudes hostis, elementos adversos dispararam tiros de canhangulo. Socorridos, os trabalhadores aguentaram-se com sucesso. No dia seguinte, ainda o amanhecer vinha longe, a tropa, que acompanhei pessoalmente, fez o reconhecimento das imediações da fazenda. Entre outros vestígios, encontrámos palhotas acabadas de abandonar ainda com o lume aceso. O objectivo era melhorar o clima de segurança no local. De todo indispensável à normalização da laboração daquela unidade agrícola.
Em Aldeia Viçosa, por vezes também acontecia haver de noite situações de alarme, que depois se verificava serem infundadas. Não admira. A latente tenção nervosa, devida à frequente vivência de momentos de grande perigosidade e agravada pelo silêncio da noite, podia explodir face a um inesperado ruído provocado por um qualquer animal selvagem, possivelmente atraído pelo cheiro lançado no ar pelos restos de comida. Mesmo que fossem insignificantes.
Lembro-me de uma vez em que, face ao tiroteio verificado e cujo ruído de noite parece ter realmente uma maior dimensão, toda a gente se levantou e, com armas e munições, correu estremunhada para as posições de defesa. Em situações do género, até se vêm e sentem coisas inexistentes que a nossa imaginação, em estado de grande excitação, nos apresenta como reais.
De outra vez, integrado numa coluna militar com certa extensão e que hoje já não consigo identificar, na estrada que leva ao Quitexe mas ainda bastante perto de Aldeia Viçosa, numa curva bastante pronunciada em local de densa vegetação, um soldado que viajava na viatura da frente também disparou inadvertidamente a arma. Tal disparo foi o suficiente para que toda a gente aos tiros saltasse das viaturas. Enquanto alguns militares, abrigados nas valetas guardavam os veículos, outros lançaram-se pelo mato no encalço de possíveis guerrilheiros.
Com toda aquela confusão, os militares da frente já disparavam forte e feio contra os da retaguarda e vice-versa. Até que alguém responsável descobriu o logro e mandou parar o fogo. Felizmente ninguém se feriu. Mas poder-se-iam ter registado consequências muito graves.
Recordo-me que, com a pressa de me abrigar também na valeta, coloquei a alavanca de velocidades em ponto morto e imobilizei o Jeep com o travão de pé, mas com a atrapalhação esqueci-me de acto contínuo accionar o travão de mão. Quando, já estendido na valeta, verifiquei de relance que o Jeep, dado que a estrada naquele sítio era descer, já estava a deslizar e a ganhar embalagem com o risco de se despistar, levantei-me de imediato e, correndo, consegui alcançá-lo e imobilizá-lo efectivamente. Enfim, coisas da breca.
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Arlindo de Sousa
Quarta-feira, 24 de Setembro de 2008
Há momentos em que nos sentimos gratificados pelo esforço e tempo perdido (ganho) para manter este blogue no ar, felizmente com o apoio de diversos amigos.
Ontem foi um desses momentos:
O amigo Arlindo de Sousa perguntava há dias nas suas crónicas:
- Que será feito do 1º Cabo Paulino?
Há 45 anos conviveu com ele no Posto Administrativo de Aldeia Viçosa e depois os seus caminhos descruzaram-se.
Não há dúvida que a net reduz as distâncias e globaliza as notícias e, foi assim que recebi um mail do Japão (!!!) do Dr. Germano Junta de Guilherme filho do Sr. Lacerda Paulino Bento (1º Cabo Paulino) dando-nos conta que o seu pai vive em Luanda e é uma óptima pessoa.
Fiquei sensibilizado por esta mensagem e queria enviar um forte abraço ao diplomata Dr. Junta de Guilherme, extensivo ao seu pai e desejar-lhe o maior sucesso na sua carreira.
João Garcia
Terça-feira, 23 de Setembro de 2008
Pergunto: Alguém em Portugal já viu a TPA Internacional?
De Moçambique recebi esta mensagem:
"Não sei se vocês já vêm a TPA Internacional aí, mas hoje deu uma reportagem sobre a inauguração do novo "Centro de Saúde do Quitexe", era o que estava escrito na fachada. Infelizmente não deu para ver muito da terra."
Quinta-feira, 18 de Setembro de 2008
Alguns dos angolanos que a partir de 1961 passaram a lutar de armas na mão pela realização imediata do seu ideal independentista acreditavam cegamente na justiça da sua causa, que defendia uma Angola apenas para as pessoas de raça negra. Nem os mestiços eram aceites.
Do lado dos portugueses, havia também gente que acreditava não menos cegamente na possibilidade real de uma pátria multirracial politicamente una e indivisível, apesar de pelo mundo geograficamente dispersa.
Como alternativa às duas opções acima referidas, ambas condenadas pela história e pela consciência civilizacional sempre em evolução, também havia um vasto universo de pessoas, agrupando gente de todas as raças e tonalidades de pele que ansiava por uma Angola independente onde todos os que nela se encontravam teriam lugar.
Este ideal – o único com futuro – foi-se enraizando profundamente na alma da maioria esmagadora das pessoas que viviam em Angola. A sua concretização seria apenas uma questão de tempo. O ideal colectivo estava maduro. Faltava apenas aquilo que em História se designa de motivo para se realizar. E que surgiria não pela luta armada mas pela revolução mental.
É por esta razão que no caso de Angola, o desfecho acabou por não ser propriamente militar. Antes foi representado por uma grande e esperançosa festa, generosamente desencadeada pelo Movimento dos Capitães em Portugal.
A quem duvidar da minha convicção nesta matéria, apenas direi que em 1975, num comício de apoio ao MPLA realizado no anfiteatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (em que por acaso estive presente), o Almirante Rosa Coutinho, falando aos presentes, afirmou que em Angola, no dia 25 de Abril de 1974, a FNLA (antiga UPA) estava praticamente extinta, a UNITA colaborava com o Exército Português e o MPLA, o partido então mais credível e de todo anti-racista, passo a citar, "estava de tanga". Creio que o conceito de "tanga", no contexto em foco, se referiria à componente militar e não propriamente à credibilidade da filosofia do MPLA. Intelectualmente sólida e em expansão em todas as vertentes do pensamento.
Em relação ao desfecho esperançoso e festivo do legítimo e profundo anseio de independência de Angola, representado pelo salto qualitativo que em termos de dinamismo lhe imprimiu a Revolução dos Cravos em Portugal, julgo que podemos dizer que, historicamente, no foro da consciência – o único espaço onde acontecem as verdadeiras mudanças de mentalidade (afinal as autêntica revoluções) – estamos em presença de uma vitória comum a angolanos e portugueses. Como poderíamos de outro modo justificar a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal? Pessoalmente, acho que esta data devia ser festejada como o dia da liberdade de e por todos os povos de língua portuguesa.
Em 25 de Abril de 1974, não é demais repetir, a chamada luta armada em Angola quase já não existia. E a independência aconteceu não pela força das armas mas pela força da evolução da consciência civilizacional de Angola, de Portugal e do Mundo.
O que em meu entender inquinou a alma angolana, por natureza entre muitas outras qualidades pacífica e tolerante, foi a guerra civil angolana que se desencadeou a seguir à independência política. Todavia, a paz regressou e Angola está em pujante progresso. Tenho esperança na capacidade realizadora dos angolanos. O presente de Angola já é admirável. A grandeza do seu futuro, entre muitos outros agentes, será directamente proporcional à capacidade que os angolanos tiverem de se abrir aos países de expressão oficial portuguesa em particular e ao Mundo em geral.
Arlindo de Sousa
Segunda-feira, 15 de Setembro de 2008
A Comissão Nacional Eleitoral (CNE) divulgou, hoje, em Luanda, os resultados definitivos das eleições legislativas referentes ao
círculo provincial do Uíge.
Eis os resultados definitivos do circulo provincial do Uíge:
2008 1992
MPLA 257.722 ( 89,21%) - 136.167
UNITA 11.998 (4,15%) - 79 .277
FNLA 5.049 (1,75%) - 13. 292
ND 3.929 (1,36%)
PRS 3.365 (1,16%) - 6 .039
PDP ANA 1.149 (0,40%) - 854
PADEPA 1.070 ( 0,37%)
AD Coligação 928 (0,32%) - 2 .313
PPE 714 (0,25%)
FOFAC 695 (0,24%)
PRD 681 (0,24%) - 4 .084
PLD 648 (0,22%)
PAJOCA 521 (0,18%) - 1 .729
FpD 422 (0,15%)
Domingo, 14 de Setembro de 2008
Poucos dias depois de ter chegado a Aldeia Viçosa, o Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França disse-me que um funcionário administrativo, para bem desempenhar a sua função, tinha de conhecer fisicamente a respectiva área de exercício. Mas, como na altura, por falta de segurança, não era possível percorrer os diversos itinerários sem protecção militar, recomendou-me que aproveitasse as oportunidades em que a tropa instalada em Aldeia Viçosa se deslocava em patrulhamento.
A primeira e julgo que única deslocação, com a finalidade referida, fi-la à Fazenda Luís Pereira. Eu viajava ao lado do condutor de um Jeep particular, equipado com uma blindagem artesanal apenas segura contra canhangulos, caçadeiras e armas de pequeno calibre. Uma bala de Mauser 7,9 mm por exemplo, disparada a uma distância conveniente, acho que furava aquilo tudo. Porém, como geralmente os grupos sublevados disparavam de longe, sempre era melhor que nada.
A minha arma era uma pistola-metralhadora FBP de 9 mm e à cinta, numa espécie de coldre, usava uma Walter de 7,65 mm. Aquelas armas para mim eram quase inúteis. Com 18 anos de idade, não possuía qualquer treino militar. No Posto, o Chefe França tinha-me apenas explicado sumariamente o funcionamento.
O único conhecimento que eu tinha de armas baseava-se numa pistola Star 6,35 mm que eu possuía clandestinamente quando vivia em Luanda. E o treino de fogo tinha-se cingido a um disparo experimental feito no quarto onde dormia na Vila Clotile e que teve como consequência furar uma mala e quase inutilizar algumas peças de roupa e umas fotografias que tinha lá dentro. Ainda hoje possuo uma das fotos afectadas.
A coluna militar, cujo efectivo não ultrapassava o de uma secção, se não me engano, era constituída apenas por uma jipão atrás e por um Jeep à frente. A minha viatura viajava no meio.
O armamento era constituído por espingardas Mauser 7,9 mm, uma bazuca, talvez um morteiro, já não me lembro bem, uma metralhadora Dreiser e uma metralhadora Breda montada no Jeep da frente em que viajava o comandante da coluna. Na circunstância um alferes, cujo nome já não recordo com precisão. Parece-me que era o alferes Reynolds, mas sinceramente não tenho a certeza (podia ter sido outro). E claro as habituais granadas de mão.
Em determinado ponto do trajecto, o alferes abrandou e indicou-me com a mão um sítio sobranceiro de mato cerrado de onde dias antes tinham sido atacados. Já não muito longe da Fazenda Luís Pereira (não sei precisar a distância), há uma subida e do lado direito existia uma mata muito fechada. Os motores das viaturas da coluna roncavam sob um sol escaldante deixando um rasto de poeira. Daquele pó fino que se entranha por todo o corpo misturando-se com o suor.
Inesperadamente, soou da mata fechada, acima referida, uma vasta fuzilaria. A tropa reagiu de imediato. Os soldados saltaram fazendo um fogo nutrido e, enquanto alguns militares ficavam de guarda às viaturas, outros meteram-se resolutamente pelo mato dentro disparando sem cessar. Com o objectivo de, se possível, apanhar os guerrilheiros. Estes num ápice deram às de vila Diogo. Era mais um ataque do género "flagela e foge". Mas o local entretanto tinha-se tornado num verdadeiro Inferno: o fogo desencadeado pelas granadas incendiárias ultrapassava o cimo do arvoredo.
Eu, como resposta imediata aos disparos dos guerrilheiros, ainda fiz uns tiros com a FBP na direcção da mata. A partir da janelinha da blindagem da viatura blindada que me transportava. Mas a minha pistola-metralhadora deixou logo de funcionar. Vim depois a saber que, com alguma frequência e naquele tipo de arma, o gás resultante da explosão do invólucro não conseguia fazer recuar suficientemente a culatra. Pelo que, em tais circunstâncias, só era possível rearmar a culatra fazendo o recuo manualmente. Enfim, não estava minimamente preparado para aquele género de situações.
Terminada a emboscada, e feito um breve balanço, verificou-se que nenhum dos elementos da coluna tinha sido afectado. Descobriu-se no entanto que o jipão foi atingido por uma bala que, depois de ter furado a chapa, ainda atravessou uma manta dobrada em que um soldado ia sentado. Conclusão: só por mera sorte, não tivemos ali um grande problema. Mas, como é costume dizer-se, tudo corre bem quando acaba bem. Foi o caso. Do lado dos guerrilheiros, não sei o que se teria passado. Contudo é bem provável que todos tivessem escapado sãos e salvos. Se assim foi, ainda bem. Ficámos todos a ganhar!
Retomando a marcha, passado muito pouco tempo chegámos à Fazenda Luís Pereira. A devastação ali era, como em Aldeia Viçosa, também total. Parecia que uma serra gigantesca tinha cortado as paredes das instalações pela raiz. Tudo rebentado, demolido e enegrecido, ferros retorcidos e tubos do que tinha sido a canalização de água incrivelmente espatifados. Pelo grau de destruição observado, é bem provável que também ali a aviação tenha molhado a sopa. Como em Aldeia Viçosa.
Regressados ao aquartelamento, felizmente sem quaisquer outros inconvenientes, relatei em carta, enviada seis dias mais tarde para a terra, a experiência do primeiro ataque por mim vivido. Do seguinte modo:
Aldeia Viçosa, 18 de Setembro de 1961.
No passado dia 12, às nove e meia da manhã, na estrada que liga Aldeia Viçosa à Fazenda Luís Pereira e quando sob escolta de uma secção de tropa da Companhia de Caçadores 89, foi o meu baptismo de fogo. Os atacantes utilizaram o método da emboscada traiçoeira. Os nossos militares reagiram com grande coragem e determinação, pondo os inimigos em fuga.
Arlindo de Sousa
Quinta-feira, 11 de Setembro de 2008
Em meados de Setembro de 1961, acompanhando o 1.º Cabo de Cipaios Paulino e o Chefe de Posto António Augusto Ribeiro França, fui para Aldeia Viçosa. Fizemos o percurso entre a actual Ndalatando e Aldeia Viçosa, sem qualquer protecção militar, passando por Lucala, Samba Caju, Camabatela, Companhia Agrícola do Pumbassai e Entre Rios (uma dependência da Pumbassai).
Antes de chegarmos ao destino, quando já circulávamos na estrada Quitexe – Aldeia Viçosa, o Chefe França, que conduzia o Jeep Willis em que nos transportávamos, foi-me mostrando os vestígios ainda muito visíveis dos dias mais difíceis que se seguiram ao fatídico dia 15 de Março de 1961: as valas abertas pelos revoltosos só tinham sido aterradas o suficiente para permitirem uma passagem apressada das viaturas; e as árvores derrubadas, ou os troncos em que devido ao seu gigantesco porte tinha sido necessário serrá-las, ladeavam nos pontos mais críticos a estrada.
Chegados a Aldeia Viçosa, sem qualquer problema, verifiquei que a povoação estava ocupada por um pelotão da Companhia de Caçadores 89 e havia uma meia dúzia de civis. Mas as casas (o aglomerado não tinha mais que umas sete ou oito habitações) encontravam-se completamente destruídas. Segundo então me foi informado, numa fase inicial os revoltosos não destruíram nada. Estavam convencidos de que os proprietários não voltavam mais e que, portanto, poderiam dividi-las entre si, assim como os respectivos pertences.
A completa destruição só teria acontecido quando os sublevados, face à reacção militar e ao elevado ânimo de muitos dos proprietários, verificaram que afinal a partida não estava ganha. A aviação, por sua vez, ao sobrevoar o local, pensando que havia gente nativa dentro do que restava das casas, completou o quadro de total devastação.
A destruição era de tal ordem, que eu e o Chefe de Posto instalámo-nos num espaço que não era mais do que um sítio, circunscrito pelas paredes de uma antiga casa de banho, tosca e provisoriamente coberto com chapas de zinco. Situação idêntica era a dos poucos civis e dos militares que ali encontrámos. Como equipamento, para além das armas, dos víveres e de algum material de expediente, tínhamos uma máquina de escrever e um transreceptor P19 do tempo da 2.ª Guerra Mundial.
As sequelas das chacinas e das destruições verificadas em 15 de Março de 1961, e nas semanas que se seguiram, estavam ainda bem vivas em toda a parte. Mas, apesar disso e na generalidade, toda a gente trabalhava corajosa e abnegadamente para que a vida na região retomasse a normalidade.
Tudo era feito para se conseguir recriar um clima de paz e trabalho que beneficiasse toda a população, independentemente da sua cor, credo ou função social: junto de Aldeia Viçosa, as fazendas Alice e Cassequel já estavam a ser de novo agricultadas e ocupadas por trabalhadores bailundos; em relação a outras fazendas, vislumbravam-se já projectos de reocupação; e Aldeia Viçosa, embora ainda cambaleante e com grandes dificuldades, começava a recuperar do vendaval destruidor que quase a aniquilou totalmente.
Nós próprios, os representantes da autoridade administrativa, dávamos o exemplo: recolhíamos chapas de zinco abandonadas, tapávamos os furos com um ferro de soldar e aproveitávamo-las para melhorar as instalações. Todos trabalhavam para que a vida retomasse o curso normal. Começando por privilegiar o sector económico. Alimentávamos a ideia de que com a riqueza, viria a segurança e uma nova fase de progresso para todos.
O esforço de recuperação foi obra de todos: trabalhadores, proprietários, militares e funcionários administrativos. Mas em todas as situações aparece sempre uma ovelha ranhosa. Certo dia encontrei um tambor de petróleo de 200 litros, provavelmente escondido pelos sublevados nos momentos mais difíceis. Fi-lo transportar para a povoação com a finalidade de ficar à disposição de toda a gente. Pois, sem que inicialmente me tivesse apercebido, houve um sujeito que disfarçada e abusivamente se apossou dele.
O atrevimento saltou à luz, quando alguns militares, precisando de petróleo para limpar as armas, se lhe dirigiram para o obter. O dito cavalheiro teve a desfaçatez de cobrar dinheiro aos militares pelo petróleo cedido. Militares que ali estavam a arriscar heroicamente a vida por uma causa genericamente tida por justa.
Assim que soube do sucedido, alertado pelos militares lesados, não estive com meias medidas. Levei-os de imediato à presença do pouco escrupuloso sujeito e obriguei-o a devolver-lhes as importâncias indevidamente cobradas. Será que algum dos ex-militares da Companhia de Caçadores 89, protagonistas deste episódio, ainda se lembra do caso? Afinal, tal como sucede com um oceano composto por um número incalculável de gotas de água, a história também se constrói com estes pequenos nadas.
Arlindo de Sousa
Terça-feira, 9 de Setembro de 2008
Sobre a História do Quitexe, partilho, agora, um apontamento que acho curioso e pode eventualmente funcionar como um pequeno contributo para a História desta vila angolana.
Por razões matrimoniais, tenho parentes em Armamar. Os meus familiares daquela localidade tiveram um primo (já falecido) que, depois de ter frequentado o curso de Direito na Universidade de Coimbra, emigrou para Angola, então colónia portuguesa.
Em Angola (década de 1920?), ingressou no Quadro Administrativo. Entre os sítios onde esteve colocado, conta-se o Quitexe. Lugar onde curiosamente eu também trabalhei como funcionário administrativo cerca de trinta anos depois.
No meio da papelada antiga da família, existe a seguinte carta enviada do Quitexe, datada de 18 de Maio de 1930.
"Quitexe – 18-5-1930
Caro Quim
Mais uma vez poz em evidencia a amizade que nos liga, da qual eu nunca duvidei.
Já deve saber por meu tio que fui colocado como Secretario de Circunscrição, logar este dos mais decentes de Angola e que dá para se viver decentemente.
Tem muitos espinhos, pois calcule que tenho de fazer de escrivão, oficial do registo civil, notario, chefe de posto e secretario da Comissão Municipal.
Para quem nunca lidou com processos, nem com toda esta trapalhada, vejo-me à vara, mas felizmente vou singrando.
Agradeço-lhe o ter lembrado o meu nome a esse cavalheiro que já cá está como Director das Alfandegas, pois é meu desejo conseguir ser nomeado para lá, porque é dos logares que aqui dão mais dinheiro.
Então por aí tudo ma mesma?
Faço votos para que seja feliz no exame.
Com respeito à sua vinda para aqui dou-lhe de conselho o seguinte, apezar da minha pouca pratica d'Africa. Se conseguir aí um logar fique por aí, pois Africa não é o que se julga; se por acaso, tiver de sahir de Portugal e queira vir para aqui pode vir sem receio, pois consegue aqui ganhar muito dinheiro.
No entanto aproveite o meu 1.º conselho.
Mais uma vez os meus agradecimentos, pela sua lembrança.
Um abraço do seu amigo certo sempre ao seu dispor.
Manuel Gomes dos Santos
Direcção Circunscrição Civil do Encoje – Quitexe
Cuanza Norte."
A respeito da carta acima transcrita, mantive a grafia então em uso. O signatário era natural de Goujoim, onde segundo me informaram está sepultado. Foi dirigida a um antigo condiscípulo dos tempos de Coimbra chamado Joaquim Silveira, que, tendo concluído o Curso de Direito, fez carreira na magistratura.
Julgo que o conteúdo da carta em foco é interessante, pelos seguintes motivos:
1 – Dá-nos uma ideia bastante clara da consideração social de que gozava um Secretário de Circunscrição e da dimensão da auto-estima resultante do exercício do cargo.
2 – Um Secretário de Circunscrição desempenhava diversas funções e da carta transparece uma quase completa ausência de formação profissional, que eu próprio constatei cerca de três décadas mais tarde. Talvez com excepção dos funcionários administrativos formados pelo antigo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, na maioria esmagadora dos casos ia-se aprendendo com a prática.
3 – A chamada cunha era uma instituição e era através dela que muitas vezes se conseguiam os empregos susceptíveis de darem mais dinheiro. Como pelos vistos acontecia com os tão cobiçados cargos desempenhados nas Alfândegas.
4 – Se um sujeito tivesse habilitações de certo nível, e em Portugal andasse às aranhas, em África encontrava emprego garantido e bem remunerado.
5 – Sob o ponto de vista da História do Quitexe, se tivermos em conta que as primeiras casas de comerciantes europeus naquela vila só se consolidam na década de 1940, inferimos: que o sítio designado de Quitexe teria sido escolhido para a edificação da sede da Circunscrição do Encoge, antes de ali haver qualquer comerciante instalado, por se considerar que a localização geográfica reunia excelentes condições para ser um centro administrativo; e possuía igualmente excelentes condições para, no futuro, nele se fundar uma povoação, a qual, assim que começaram a surgir as primeiras casas comerciais, tomou logo o nome do sítio – Quitexe.
6 – Ainda no que concerne à História do Quitexe, baseando-nos no conteúdo da carta acima transcrita, deduzimos também que, em data imediatamente posterior a 1930 que não sabemos precisar, aquela área foi seguramente alvo de uma reorganização administrativa, em consequência da qual a povoação do Quitexe deixou de ser a sede da Circunscrição Civil do Encoge por aquela Circunscrição ter sido extinta.
7 – O Quitexe teria assim sido logicamente transformado em sede do posto administrativo do mesmo nome, sob a alçada do Concelho de Ambaca em Camabatela, distrito do Quanza Norte, baixando de categoria.
8 – Na sequência dos acontecimentos de 15 de Março de 1961, uma nova reorganização administrativa fez o Quitexe recuperar a antigo estatuto perdido (de cabeça de circunscrição), transformando-o em sede da Administração do Concelho do Dange, então criada. E sob a sua dependência, para além do posto – sede, ficaram os postos administrativos de Aldeia Viçosa e Vista Alegre, então também criados, e o Posto Administrativo de Cambama destacado do Concelho de Quibaxe.
9 – Pouco tempo depois (21 de Julho de 1962), verificou-se novo reajustamento administrativo, em resultado do qual o Concelho do Dange foi separado do Distrito do Quanza Norte, de cuja capital o Quitexe dista 300 Km, e passou a pertencer ao distrito do Uíge, cuja capital está apenas a 40 Km de distância.
Houve cerimónia oficial no Quitexe. Para além de muitas outras pessoas, estiveram presentes os Governadores de ambos os distritos respectivamente Major Silva Sebastião e Major Rebocho Vaz, o Comandante Militar do Quitexe (não sei o nome) e o Dr. Pinto Assoreira. Tenho fotos. Na ocasião foram "Louvados por Sexa. Gov. Dist. Q. N." o Secretário da Administração do Quitexe Políbio Fernando Amaro Valente de Almeida e os Chefes de Posto António Augusto Ribeiro França (Aldeia Viçosa) e Guedes Vaz (Vista Alegre).
Como se constata, a carta data de 18 de Maio de 1930 que o Secretário da Circunscrição do Encoge – Quitexe, Angola, Manuel Gomes dos Santos, enviou então ao seu antigo condiscípulo de Direito, Joaquim Silveira, magistrado colocado algures numa comarca do Norte de Portugal, contem preciosas informações, que bem podem representar um pequeno, todavia útil, contributo para a História do Quitexe.
Em jeito de conclusão, creio que podemos registar que o sítio do Encoge propriamente dito (uma espécie de Nambuangongo dos finais do século XIX e inícios do século XX), dado o seu valor estratégico, constituiu-se em centro do poder militar. Visto que quem o ocupasse militarmente dominava a região.
A partir do Engoge primeiro teriam dominado os Dembos acaudilhados pelo dembo Quitexe. Derrotado o dembo Quitexe pelas armas lusas, a partir do Encoge passaram a dominar militarmente os portugueses.
A seguir à vitória militar, ter-se-ia imposto a necessidade de pacificar e organizar o poder civil, para cujo centro foi escolhido um sítio (com grandes possibilidades futuras) que, certamente em honra do valor guerreiro do chefe dembo vencido e avassalado, foi denominado de Quitexe. Passámos assim a ter a "Circunscrição Civil do Encoje – Quitexe (distrito do) Cuanza Norte". A partir daqui, segue a inferência que o amigo João Garcia já conhece.
Um pouco à semelhança do que a seguir a 1961 se passou com Nambuangongo, o interesse estratégico do Encoge não era apenas militar, era também espiritual, era o significado, porventura de invencibilidade, que lhe estava associado. A sua ocupação teria representado um ponto de viragem (sem retorno), a que se seguiu a organização do poder civil e talvez uma pacificação com aspectos a fazer lembrar a acção psicossocial que, depois de ultrapassados os momentos mais traumáticos depois de 1961, foi implementada com sucesso em todo o Norte de Angola.
Arlindo de Sousa
Domingo, 7 de Setembro de 2008
Quinta-feira, 4 de Setembro de 2008
O Sr. Guedes
Quando cheguei ao Quitexe (fins de 1961 início de 1962), conheci o Sr. Guedes (para os amigos simplesmente Guedes). O Guedes, na altura dos trágicos acontecimentos de 15 de Março de 1961, parece que se viu apertado. De tal maneira que fez uma promessa (já não sei a que santo) de andar um ano inteiro sem fazer a barba.
Com as enormes barbas, entretanto crescidas, o Guedes parecia um patriarca bíblico. Só as viria a cotar no dia 15 de Março de 1962. Quando as cortou, todos estranhámos o seu aspecto. Não parecia o mesmo. Afinal não é impunemente que se cortam umas barbas de respeito. Como eram as do Guedes.
O Guedes sabia trabalhar muito bem a madeira. Por isso, consciente da sua mestria, não gostava que lhe chamassem carpinteiro. Apenas marceneiro.
Como marceneiro, o Guedes trabalhou na oficina da Administração, pago com verbas do orçamento da Comissão Municipal do Quitexe. Como era um belíssimo conversador, a carpintaria, que funcionava num barracão junto ao edifício da Administração, era muito frequentada sobretudo pelos funcionários de que eu também fazia parte. Organizavam-se ali verdadeiras tertúlias que, na altura e face à situação do Quitexe, muito contribuíam para nos manter moralizados.
Recordo-me de uma obra-prima do Guedes. Fez uma verdadeira obra de arte em madeira embutida que representava as armas do batalhão que na altura ali se encontrava. Salvo erro era o Batalhão 317 (não sei se a identificação está cem por cento correcta).
Acontece que o Batalhão referido ia ser rendido e a peça artística era para, na hora da despedida, ser oferecida ao Comandante Militar pelo Administrador (já não sei exactamente qual). Cheguei a ver a obra-prima pronta. Hoje deve estar algures em Portugal a enfeitar uma prateleira de algum dos descendentes do então Comandante Militar do Quitexe. E o Guedes, onde estará hoje o amigo Guedes?
Arlindo de Sousa
Silva Fogueteiro
Também me recordo do Sr. Silva Fogueteiro. Era conhecido pelo seu feitio temperamental. E imprevisível.
Quando por alguma razão, a Administração ou a Comissão Municipal precisavam de o citar para alguma coisa, era sempre um problema. Negava-se a assinar e pronto. Mantinha-se inflexível na sua posição de recusa.
De tal maneira que em uma das vezes, com uma citação judicial, resolveu-se o problema da seguinte maneira: o oficial de diligências, que na altura me parece era o Varela (ainda hei-de dedicar também algumas linhas recordativas a este amigo), foi ao estabelecimento do Sr. Silva Fogueteiro, acompanhado de duas testemunhas, leu o mandado em voz alta e as testemunhas assinaram. De imediato, o Varela anunciou em voz bem audível: para todos efeitos, o Sr. Silva está legalmente citado e sofrerá as consequências se não cumprir o que acaba de lhe ser lido.
A instabilidade comportamental do Sr. Silva parecia dever-se ao facto de andar sempre às turras com a mulher.
Sucede que o Sr. Silva e a esposa tinham uma sobrinha, que na altura vivia com eles no Quitexe, por quem um Aspirante Interino da Administração (não menciono o nome por razões óbvias) se enamorou. No ardor da paixão, o Aspirante meteu-se à sorrelfa no quintal e, num sítio escuso, entre outras coisas, teria aproveitado para dizer coisas de encantar à moça.
Pelos vistos, o Silva andava à coca. Apercebendo-se da situação, foi buscar espingarda e surpreendeu os enamorados em flagrante. Com grande estardalhaço, e indiferente às infelizes lágrimas da sobrinha, obrigou o Aspirante a colocar-se no meio do quintal e manteve-o ali detido sob a mira da arma.
Foi um escândalo. Veio o Administrador e não sei mais quem que lá libertaram o não menos infeliz Aspirante que durante uns dias foi enviado de quarentena para Camabatela até a borrasca passar. Creio que, como soe dizer-se, acabou por ficar tudo em águas de bacalhau.
Mais tarde, o Sr. Silva veio a aumentar a violência e a frequência das turras com a esposa, que acabou por deixá-lo sozinho. Enfim, tempos que já lá vão.
Arlindo de Sousa
Segunda-feira, 1 de Setembro de 2008
Em breve republicarei as fotografias das equipes com a identificação de um grande número de "atletas".
Coloco, agora a mensagem, que muito agradeço, do amigo António Fonseca sobre a equipe dos solteiros esperando que nos continue a brindar com a sua colaboração:
É com todo o prazer que dou uma ajuda na identificação de jogadores que disputaram o encontro solteiros/casados no Quitexe em 1972.
Na equipa de solteiros, de pé, da esquerda para a direita:
O terceiro é o Evaristo dos irmãos Santiago, proprietários do Café situado na estrada de cima e que corresponde ao lote n.º 74, de acordo com a planta do Quitexe.
Na mesma equipa, agachados, da esquerda para a direita:
O terceiro é o Pimenta do talho e que na referida planta corresponde ao n.º 18.
Entre outros, foram dois grandes amigos que tive no Quitexe e ainda guardo fotos tiradas com eles em Carmona, onde fomos passar a Páscoa de 1973, usando para o efeito o Peugeot 404 do Pimenta. Após o regresso, à noite, ainda houve tempo para umas cervejas com o Sr. Daniel Portela (Chefe na Guarda Rural) e o Sr. José Morais, colocando este na rua uma mesa para o efeito, dada a temperatura que se fazia sentir naquele dia.
Todos refizeram a sua vida. Os irmãos Santiago foram para o Brasil, o Sr. José Morais abriu um Restaurante com a esposa e filha em Lisboa e o Sr. Daniel Portela foi integrado na PSP, encontrando-se aposentado.
Logo que eu tenha mais novidades ou algo em que possa colaborar entrarei em contacto.
António Fonseca
Regressado de férias vou tentar manter o blogue o mais activo possível contando, para isso com a excelente colaboração dos amigos António Fonseca, Arlindo de Sousa, Jorge Santos, José Varela, Rui Rei e outros que queiram participar com as suas memórias, as suas histórias, as suas fotografias, enfim, com a sua presença, para enriquecer este espaço. Todas as colaborações (textos, fotos, etc) deverão ser enviadas para j-garcia@netcabo.pt independentemente dos comentários que são sempre oportunos!
Um abraço para todos!