A guerra de Angola e a interpretação que dela faziam dois velhos após o seu início
O Correia era um velho teso, decidido e teimoso, amigo do seu amigo, austero até à rispidez e muito exigente. Exigente tanto com os seus empregados, que eram muito poucos, como com aqueles com quem lidava, o que, honra lhe seja feita, nunca pôs nesse relacionamento qualquer descriminação que ultrapassasse os limites da normalidade. Era assim por sua natureza, um transmontano talhado no duro granito da sua terra que os muitos anos de vida nos trópicos não modificaram. Naquela altura, os brancos, que alguma coisa distinguia dos demais, eram, por via de regra, alcunhados pelos negros. Ao Correia, chamaram-lhe TUIA CAVANDUA que significa Não senta; Tem fogo, o que dá uma ideia da maneira como captavam as características mais significativas dos alvejados.
Era casado, sem filhos, com uma francesa que lhe chamava “meu Correiá”. De vez em quando aparecia no Quitexe, quando arranjava boleia, o que era difícil, pois vivia num beco sem saída chamado Cólua. Por aqui ninguém sabia como, quando, nem porquê lá foi parar, vindo provavelmente de Luanda e ali possuía uma “chitaca” e um “boteco” com residência feito de pau-a-pique. Depois do 15 de Março andou perdido e fugido na mata durante dez dias, tentando atingir o Quitexe que por estrada distava cerca de setenta quilómetros, até que lá conseguiu chegar, arrastando-se, prestes a entregar a alma ao criador, sem ter conseguido salvar a mulher. Desta velha francesa nunca se soube verdadeiramente o fim. Foi, possivelmente, igual ao de tantas outras nesses dias, mas como era já velha, devem ter acabado com ela à catanada. No entanto, nunca apareceram vestígios fosse do que fosse. Aliás o Correia foi o único branco que se salvou na área compreendida entre Cólua, Zalala; Vale do Vamba e Vale do Luege até às proximidades do Quitexe.
Mal dizendo a sua sorte, o antigo Tuia Cavandua que nunca mais recuperou da caminhada e do choque que os últimos acontecimentos lhe causaram, começou a sofrer do coração, se é que antes já não sofria. Passava, agora, o seu tempo a clamar, nas horas em que havia disposição para o ouvir, que a partir dos chamados “acontecimentos”, nada mais havia a fazer que arrumar as “ikuatas” enquanto era tempo e desandar para onde se viera, a metrópole.
Depois da matança dos brancos e da correspondente retaliação, e da maneira como tudo foi feito, podia dizer-se que os pretos tinham-nos perdido definitivamente o respeito e o medo. O Silva Porto tinha sido desrespeitado e ofendido, mas não chegaram a tanto. Ele é que não resistiu à afronta. Outros morreram nas guerras antigas e nas mais recentes, mas duma maneira geral a combater e não, como agora, o que trazia alguma lógica ao raciocínio do Correia: mostrar que nada nos protegia, nem as armas que não havia e, muito menos, o respeito que acabara de uma vez por todas e que sempre nos valeu muito mais do que os meios.
O português branco, mesmo o condenado, teve sempre a protegê-lo um prestígio que lhe advinha da vantagem dos meios e dos conhecimentos que aliou à violência sempre que se viu na necessidade de a usar, mas que posteriormente já valia por si próprio.
O Correia tinha, eventualmente, razão, estas coisas uma vez acontecidas raramente se recuperam: destruído o mito, não estavam nas suas mãos os meios quer materiais, quer psico-sociais nem para manter, nem para substituir. Aguentar, esperando um milagre que os tempos em nada ajudavam, era mais uma ilusão. Os factos mostraram, nos anos subsequentes, que foi possível no terreno uma alteração importantíssima da situação inicial, quando parecia que tudo estava perdido. Mas seria necessário um tempo muito longo passado sobre esta nova situação para poder demonstrar se as posições do Correia podiam ser refutadas. Esse tempo foi curto para tirar conclusões e, à falta delas, raciocina-se sobre o que parece mais evidente: Sendo a tese, ou melhor, a conclusão do Correia, um factor que parecia óbvio e apenas um velho com os sentimentos que uma longa permanência naquelas terras lhe proporcionara e, com intenção ou sem ela, teve o mérito de acrescentar uma hipótese que nunca mais viria a alterar-se até ao presente.
Talvez o suicídio de Silva Porto fosse premonitório daquilo que muitos anos depois se chamou “retornados”, e, então, a interpretação do Correia passe a ser menos simplista do que parecia naqueles meses do ano de 1961. Depois perdeu-se a auto-confiança quando o exército português deixou de poder manter, com todas as dificuldades que tinha, o controlo da situação e que teve o seu fim quando esse mesmo exército se auto-demitiu e pôs em evidência aquilo que o Correia catorze anos antes anunciava e se tornou nele uma ideia fixa: “perderam-nos o respeito, perderam-nos o respeito, não há nada a fazer”.
O que nos manteve nos últimos cinquenta anos em paz e sem correr qualquer riscos de violência extrema, dispersos e mesmo isolados, desarmados e confiantes no que parecia ter sido a criação de uma convivência definitiva, foi, efectivamente, esse respeito, independentemente das causas que lhe deram origem.
O Correia, para quem o nome de Cuia Cavandua já não tinha qualquer razão de ser, com o aspecto mais de fantasma que de gente, morria dois anos depois no Quitexe, com cerca de oitenta anos, com um ataque cardíaco, não tendo sido possível socorre-lo com uma simples ampola de óleo canforado, porque se morria de bala, à catanada ou de desastre, mas nunca com oitenta anos e com um coração a condizer.
No outro lado a situação era mais grave, pois se entre os europeus existiam divergências, nunca tiveram consequências que dessem origem a conflitos ou ocorrências de alguma gravidade. Isto não acontecia entre os que estavam por enquanto refugiados nas matas que era a quase totalidade da população indígena. Aí ainda se discutia acesamente o que deveria ser feito a seguir, uma vez que o golpe não teve o resultado que esperavam: os brancos que se salvaram fixaram-se em determinados locais, formando núcleos de resistência e, nalguns casos passando ao ataque. A divisão do lado dos negros tinha uma linha que demarcava com grande nitidez as suas posições e se chamava classe etária. Os mais velhos viam o desenrolar dos acontecimentos à luz da sua própria experiência e daquilo que a sua tradição do antigamente sobre as suas relações com os brancos lhes havia ensinado e formado a opinião que agora sustentavam. Aos mais novos, libertos dessa sabedoria e influenciados pelos acontecimentos dos territórios vizinhos, mais lhes fortalecia a convicção daquilo que o velho correia era o intérprete, no outro lado: os brancos, afinal, já não metiam medo a ninguém.
O velho Canzenza, a quem era difícil determinar a idade, seria possivelmente o preto mais velho da área do Posto do Quitexe. Segundo ele dizia, ficara careca, o que não é vulgar nos pretos, por ter carregado à cabeça até ao Ambriz, sacos de café. Tinha vindo, ainda novo do Cananga e depois “fundou” uma senzala chamada Zenza-Camuti, constituída exclusivamente pela sua família. Não seguia nenhuma religião cristã, seria talvez animista, não falava português, como aliás a maioria dos velhos e era polígamo.
O velho Canzenza, que não devia ter concordado com a iniciativa da revolta, defendia de imediato que se deveriam entregar, o que, diga-se em abono da verdade, seria difícil de concretizar dada a exaltação e o descontrolo que se vivia em ambos os lados. Fundamentava a sua opinião no facto de, em tempo algum, os pretos terem levado a melhor nas suas lutas contra os brancos, quando estes eram em pequeno número e vivendo isoladamente, quanto, mais agora que eram muitos, instalados em mais e maiores fazendas, ou concentrados em povoações comerciais. Por isso se bateu, lembrando os exemplos da rainha Ginga e do N’gola Kiluange que foram “enxotados” pelos brancos de tal maneira que nunca mais os incomodaram. Estas disputas deram origem a autênticas chacinas em plena mata, não por questões ideológicas, mas para se sair do impasse que a indecisão dos resultados da acção inicial tinha criado. Depois cada grupo foi decidindo, por si, tendo-se apresentado a maioria dos Mahungos, que passaram a designar-se por “Guizaco”, outra parte, arrancou em direção ao Congo, a quase totalidade dos Ambaquistas, que eventualmente tinham mais responsabilidades nos “acontecimentos” e, por fim, aqueles que continuaram refugiados na mata, até o exército dar a guerra por acabada. Representava um número reduzido, que de vez em quando dava sinais de vida, o que se pode avaliar pela ineficácia da guerra que nos fizeram durante catorze anos, e que não impediu ter sido o período em que globalmente Angola teve o maior desenvolvimento de toda a sua história.
O Canzenza, coerente com as suas ideias, foi o primeiro a apresentar-se logo nos primeiros dias depois do 15 de Março, antes mesmo das lutas violentas já referidas.
Foi morto de imediato, não sabemos como nem em que circunstâncias, o que não é difícil de imaginar, dadas as condições que, então, se viviam.(1) Com a morte deste homem cometeu-se, simultaneamente um crime e um erro, em função daquilo que já se sabia e melhor, se veio a saber depois, da sua atitude face a tudo o que se estava a passar e dado o seu prestígio junto das populações daquela zona. Seria um elemento de grande utilidade na política que se tentou posteriormente seguir de proceder, cautelosamente, a uma reforma da sociedade angolana, de que nada resultou pois nem sequer houve tempo para avaliar o que se tinha feito.
Os dois velhos, o branco Correia e o negro Canzenza, são dois elementos representativos de entre muitos outros, por onde se pode pegar para tentar uma interpretação, talvez demasiado casuística, do que se pensava naquele tempo. Mais concretamente, pode dizer-se que foram as duas faces da mesma moeda em que cada um escreveu, com a lógica do que era capaz, a sua verdade.
Nota- O Correia que aqui evocado é uma mistura de duas pessoas existentes no Quitexe nesse tempo.
(1)– Sobre a morte do velho Canzenza ler “Quitexe 61 – Uma Tragédia Anunciada”- Garcia, João Nogueira
Alfredo Baeta Garcia
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