Hoje, depois de assistir ao programa sobre a Guerra Colonial não podia deixar de prestar homenagem ao meu Pai. Só um grande homem, envolvido naquela imensa tragédia, poderia dizer não à barbárie, não à vingança e não se deixar submeter pelos instintos mais primários que reduziu os intervenientes desta guerra à categoria de bestas humanas desprezíveis.
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É dele o texto que se segue:
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Reconhecimento
Corre o mês de Abril de 61 no Quitexe. O tractor, que eu havia emprestado para os trabalhos de abertura da pista para as avionetas, continua ao serviço da Administração. Mas, entretanto, alguém me vem informar que o pretendem utilizar na abertura de valas para enterrarem os pretos que vão sendo mortos na repressão cega, desenfreada e absurda da revolta. Faço-me ouvir:
- Quem os mata que lhes abra a cova! Com o meu tractor, não!
Retiro a máquina e guardo a chave. Ninguém se atreveu a questionar-me.
Os corpos dos negros são atirados da ponte ao rio Luquixe. Às vezes ainda moribundos, agarram-se aos ramos das árvores que bordejam o rio e assim se vão esvaindo até que a morte e a corrente os transportem rio abaixo.
A indisciplina, que entretanto reina entre os brancos, causa alguma apreensão às autoridades.
Neste ambiente, sem calor humano, os sentimentos são confusos. Não há mulheres, nem o sorriso ou o choro de uma criança. À noite matilhas de cães famintos, abandonados pelos seus donos cercam o Quitexe, uivando sem parar, pressagiando a desgraça e a morte. Os nervos sempre à flor da pele, o vinho, a cerveja e os instintos mais primários de cada um vão tomando conta do dia a dia do Quitexe. A vida humana, para alguns, tem apenas o valor do custo de uma bala, 7$50. Triste imagem de gente "civilizada". Estes são, afinal, os valores morais emergentes da filosofia da guerra.
É neste estado de alma que de 15 em 15 ou até de 8 em 8 dias se faz a rendição do comando militar do Quitexe. Após a saída do Tenente Simões Dias o comando passou a ser exercido por alferes milicianos. Fui cumprimentar o novo comandante, um jovem alferes. Tem uma postura mais militar e vem acompanhado de um sargento de enorme estatura e com um farfalhudo bigode (dos antigos, com pontas retorcidas).
Só passados uns três dias volto a encontrar o Alferes Coimbra, no terraço do bar do Pacheco; eu aguardo, sentado a uma mesa, a hora do jantar. Dentro do bar reinava a confusão. Espíritos exaltados, com ameaças no ar tornavam o ambiente e o convívio desagradável. Eu tentava manter-me, o mais possível, afastado dessas confusões. O alferes e o sargento, cada um com uma metralhadora ligeira FBP na mão, vêm ao meu encontro. Fiquei assustado pois eles vinham com caras de poucos amigos. O Alferes Coimbra vem dizer-me que precisava mudar a valvulina e o óleo nos carros e queria saber se eu os tinha
- Não, não! Quero ter a certeza! Vá devagar e não tenha pressa de voltar!
Lá fui cumprir a ordem, mas fiquei intrigado com as palavras do Alferes. Passados uns bons minutos resolvo regressar para o informar da existência dos óleos.
Quando me aproximo do bar ouço a voz do Alferes, em tom agreste, dizer que a indisciplina, as bebedeiras vão acabar. De ora em diante o Quitexe está sob controlo militar e ele, como comandante, não vai tolerar a continuação das ameaças e falta de respeito que põem em causa a penosa defesa da povoação. Fiquei cá fora, esperando que o militar acabasse a reprimenda. Quando saiu fui ao seu encontro para lhe dar conta dos óleos.
- Senhor Garcia, eu não preciso de óleos nenhuns! Não queria era que assistisse ao que ia dizer a toda aquela gente e pensasse que as minhas palavras também eram dirigidas a si.
Sem mais palavras, despediram-se com um até amanhã e regressaram ao Posto.
As palavras do alferes comoveram-me. Finalmente alguém reconhecia o mérito e a bondade das minhas atitudes nesta guerra diabólica.
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João Nogueira Garcia
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