Terça-feira, 30 de Outubro de 2007

Histórias na tragédia

Hoje, depois de assistir ao programa sobre a Guerra Colonial não podia deixar de prestar  homenagem  ao meu Pai. Só um grande homem, envolvido naquela imensa tragédia, poderia dizer não à barbárie, não à vingança e não se deixar submeter pelos instintos mais primários que reduziu os intervenientes desta guerra à categoria de bestas humanas desprezíveis.

.

É dele o texto que se segue:

.

Reconhecimento

Corre o mês de Abril de 61 no Quitexe. O tractor, que eu havia emprestado para os trabalhos de abertura da pista para as avionetas, continua ao serviço da Administração. Mas, entretanto, alguém me vem informar que o pretendem utilizar na abertura de valas para enterrarem os pretos que vão sendo mortos na repressão cega, desenfreada e absurda da revolta. Faço-me ouvir:

- Quem os mata que lhes abra a cova! Com o meu tractor, não!

Retiro a máquina e guardo a chave. Ninguém se atreveu a questionar-me.

Os corpos dos negros são atirados da ponte ao rio Luquixe. Às vezes ainda moribundos, agarram-se aos ramos das árvores que bordejam o rio e assim se vão esvaindo até que a morte e a corrente os transportem rio abaixo.

A indisciplina, que entretanto reina entre os brancos, causa alguma apreensão às autoridades.

Neste ambiente, sem calor humano, os sentimentos são confusos. Não há mulheres, nem o sorriso ou o choro de uma criança. À noite matilhas de cães famintos, abandonados pelos seus donos cercam o Quitexe, uivando sem parar, pressagiando a desgraça e a morte. Os nervos sempre à flor da pele, o vinho, a cerveja e os instintos mais primários de cada um vão tomando conta do dia a dia do Quitexe. A vida humana, para alguns, tem apenas o valor do custo de uma bala, 7$50. Triste imagem de gente "civilizada". Estes são, afinal, os valores morais emergentes da filosofia da guerra.

É neste estado de alma que de 15 em 15 ou até de 8 em 8 dias se faz a rendição do comando militar do Quitexe. Após a saída do Tenente Simões Dias o comando passou a ser exercido por alferes milicianos. Fui cumprimentar o novo comandante, um jovem alferes. Tem uma postura mais militar e vem acompanhado de um sargento de enorme estatura e com um farfalhudo bigode (dos antigos, com pontas retorcidas).

Só passados uns três dias volto a encontrar o Alferes Coimbra, no terraço do bar do Pacheco; eu aguardo, sentado a uma mesa, a hora do jantar. Dentro do bar reinava a confusão. Espíritos exaltados, com ameaças no ar tornavam o ambiente e o convívio desagradável. Eu tentava manter-me, o mais possível, afastado dessas confusões. O alferes e o sargento, cada um com uma metralhadora ligeira FBP na mão, vêm ao meu encontro. Fiquei assustado pois eles vinham com caras de poucos amigos. O Alferes Coimbra vem dizer-me que precisava mudar a valvulina e o óleo nos carros e queria saber se eu os tinha em armazém. Respondi-lhe que sim, nem era preciso ir confirmar.

- Não, não! Quero ter a certeza! Vá devagar e não tenha pressa de voltar!

Lá fui cumprir a ordem, mas fiquei intrigado com as palavras do Alferes. Passados uns bons minutos resolvo regressar para o informar da existência dos óleos.

Quando me aproximo do bar ouço a voz do Alferes, em tom agreste, dizer que a indisciplina, as bebedeiras vão acabar. De ora em diante o Quitexe está sob controlo militar e ele, como comandante, não vai tolerar a continuação das ameaças e falta de respeito que põem em causa a penosa defesa da povoação. Fiquei cá fora, esperando que o militar acabasse a reprimenda. Quando saiu fui ao seu encontro para lhe dar conta dos óleos.

- Senhor Garcia, eu não preciso de óleos nenhuns! Não queria era que assistisse ao que ia dizer a toda aquela gente e pensasse que as minhas palavras também eram dirigidas a si.

Sem mais palavras, despediram-se com um até amanhã e regressaram ao Posto.
As palavras do alferes comoveram-me. Finalmente alguém reconhecia o mérito e a bondade das minhas atitudes nesta guerra diabólica.

.

João Nogueira Garcia 

publicado por Quimbanze às 22:37

link do post | comentar | favorito

.OUTRAS PÁGINAS

.posts recentes

. Novo Plano Urbanístico do...

. Rui Rei 1955 - 2018

. Batalhão de Caçadores 3 e...

. Município de Quitexe nece...

. O Nosso Bondoso Director

. Associação da União dos N...

. Governador do Uíge emposs...

. Plano Urbanístico do Quit...

. Fotografias do Quitexe - ...

. 15 de Março - "Perderam-n...

.arquivos

. Abril 2018

. Março 2018

. Junho 2017

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Novembro 2014

. Março 2014

. Janeiro 2014

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Janeiro 2013

. Setembro 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

.mais sobre mim

.Abril 2018

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

.pesquisar

 

.subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub